sexta-feira, março 31, 2006
Aqui neste sítio já esteve a estátua da Maria da Fonte, no largo do Kinaxixe em Luanda, e hoje está esta que me dizem ser a da Rainha Jinga. Também já lá esteve um tanque soviético. Está certo. Mas não me admiraria nada se um dia lá pusessem a estátua de uma Kinguíla, feita em papel machê, com os milhões de notas velhas dos kuanzas, quando estas já não servirem para mais nada e o dólar for assumido definitivamente como moeda nacional.
Anal Catrineta
Nos estaleiros de Fjordlund, na Noruega, está quase pronto um dos maiores navios de cruzeiro do Mundo, cuja inauguração está prevista já para o próximo verão. Vai ser explorado por um consórcio de agências de viagens especializadas no turismo gay, um nicho de mercado que, pelos vistos, já não será tão nicho assim. O "Barco do Amor Gay", portanto. E sobre o roteiro inaugural, sabe-se que fará escalas em vários portos europeus, onde estão incluidos Lisboa e a Madeira. O navio seguirá depois para a Tailândia e Australia. Como novidade, soubemos ainda, nas diferentes escalas não haverá idas a terra, haverá sim, festas a bordo e diversos "bares abertos" onde os estivadores e os demais trabalhadores dos portos serão convidados especiais. À hora do fecho desta edição ainda não estava confirmada uma eventual escala na Guiné. Já adivinharam como é que se vai chamar o barco, não já?
Aprender/Ensinar
Entre aprendizagem e ensino, reside uma questão que, desde sempre, tem enredado o pensamento português, o pensamento em português, e o mantém enclausurado na própria linguagem. E não será por acaso, como não é por acaso que em francês se usa o mesmo vocábulo, "aprendre", para dizer ambas as coisas. Nós cá, como temos duas, colocadas cada uma em seu lado parecem dizer coisas diferentes. É o nosso fado, e o nosso destino, quando desde sempre se sabe que as coisas não se ensinam, aprendem-se.
quinta-feira, março 30, 2006
Só queria um marido!
Mais tocante e comovente que as canções de Cesária Évora, foi ouvi-la e vê-la, com aquele olhar tão triste, responder à jornalista que lhe perguntava como é que se sentia com o sucesso e a fama que tinha na Europa.
"Sabe? O que eu gostava mesmo era de ter um marido!"
"Sabe? O que eu gostava mesmo era de ter um marido!"
Erecções matinais
Quando, surpreendido, um dia o velhote acordou com uma, e deu com a velhota ao lado, toda entusiasmada, na esperança de matar saudades, foi logo avisando:
"Ó mulher, tu nem penses! Eu vou é já a correr ao café mostrar isto aos meus amigos."
"Ó mulher, tu nem penses! Eu vou é já a correr ao café mostrar isto aos meus amigos."
O português é fodido!
Por exemplo. Diz-se pelouro ou poleiro? É que, neste caso, acho que tanto faz dizer de uma maneira como de outra, querem ambas dizer a mesma coisa.
Mr Saucers?
Eu, se fosse a ele, processava o Google em inglês. Então não é que, no post anterior, chamam ao homem, "Saucers of Rasp"? Isso é coisa que se chame a alguém? É verdade que a tradução é livre, e ele é lá do CDS, mas que diabo...
quarta-feira, março 29, 2006
Traguem as espanholas!
"Tragam as espanholas, senhor deputado, tragam as espanholas!"
Pedia, no debate parlamentar, o "sexy deputado" Pires de Lima.
Terá-se enganado?
Ò tempo volta pra trás
Hoje, no Forum da Tsf, sobre jornais, tiveram que cortar o pio ao Baptista Bastos, esse grande dinossauro vivo, que não se calava com as histórias que no tempo dele é que era bom, e tal, e coiso... que hoje era tudo uma pouca vergonha, uma cambada de ignorantes sem espinha, jornalistas sem preparação, e mais a memória do António Sérgio, e às tantas, referiu-se ao assédio sexual às jovens estagiárias nas redacções. Aqui, ele bem que podia meter a viola no saco e estar calado. Ainda bem que o interruptor estava do lado do Manuel Acácio.
terça-feira, março 28, 2006
aos 57 minutos
não sei como acabará o jogo, mas o Moreto e o Benfica estão a portar-se que nem uns leões.
Viver contrariado
ou fazer coisas contrariado, além de mal estar e sofrimento, sabe-se que pode provocar as mais variadas doenças. Como a antipatia, por exemplo, que não sendo considerada uma doença grave, pode ser muito chata. Aqueles que têm a sorte de perceber os sintomas a tempo, ou cortam logo o mal pela raiz, o que pode ter efeitos secundários, e também doer... ou adaptam-se e aceitam. (Que não é o mesmo que resignar-se)
segunda-feira, março 27, 2006
O passo trocado
«Com a boleia da televisão, Portas só terá um dia que descer de carrinho o escorrega do cenário e vir juntar-se a nós, de novo como Paulinho das feiras.»
É brilhante o artigo de Eduardo Cintra Torres no Público de domingo, "Os falsos comentadores", sobre as prestações de Paulo Portas na Sic Notícias. E termina com o período em que Emídio Rangel dirigiu a RTP:
«Rangel pode não ter vendido um presidente como quem vende um sabonete, mas, quanto a primeiros ministros, conseguiu vender dois sabonetes».
PS: Claro que para estes dois, é para este lado que dormem melhor, entra-lhes por um ouvido e sai-lhes pelo outro, nós é que andamos com o passo trocado!
É brilhante o artigo de Eduardo Cintra Torres no Público de domingo, "Os falsos comentadores", sobre as prestações de Paulo Portas na Sic Notícias. E termina com o período em que Emídio Rangel dirigiu a RTP:
«Rangel pode não ter vendido um presidente como quem vende um sabonete, mas, quanto a primeiros ministros, conseguiu vender dois sabonetes».
PS: Claro que para estes dois, é para este lado que dormem melhor, entra-lhes por um ouvido e sai-lhes pelo outro, nós é que andamos com o passo trocado!
domingo, março 26, 2006
Talvez se safe...
Abdul Rahman
Depois da prisão de um Afgão convertido ao cristianismo, que pode ser condenado à morte por ter renegado o Islão, a imprensa internacional está chocada e interroga-se sobre a capacidade dos Ocidentais influenciarem um regime que eles próprios instalaram. no Courrier International
"... I am certain, Mr. President, that dropping the case against Mr. Rahman would bestow great honor upon the Afghan people and would raise a chorus of admiration in the international community." (mensagem do Papa enviada ao Presidente Afgão)
"... I am certain, Mr. President, that dropping the case against Mr. Rahman would bestow great honor upon the Afghan people and would raise a chorus of admiration in the international community." (mensagem do Papa enviada ao Presidente Afgão)
sexta-feira, março 24, 2006
Hoje acordei assim assim...
Há por aí nalguns blogs a mania de dizer que se acordou assim, ou assado, e depois tunga, vai de botar uma foto de uma vedeta qualquer a condizer com o estado de alma, ou com o estado novo, sei lá... Eu, é mais com o estado a que isto chegou.
O Herói
Espero que quem não viu o filme no cinema o tenha podido ver ontem na RTP. Eu já em tempos tinha falado dele aqui, e tenho pena de o não ter revisto agora... Passou-me.
Psicologia da bola
A propósito do penalty que o Baía teve a sorte de defender e o Ricardo não.
Aqueles que têm por hábito insultar e culpar os árbitros, deviam antes agradecer-lhes por estes lhes servirem de bodes expiatórios para os seus desaires.
Aqueles que têm por hábito insultar e culpar os árbitros, deviam antes agradecer-lhes por estes lhes servirem de bodes expiatórios para os seus desaires.
quinta-feira, março 23, 2006
Sem comentários
Seguindo a lei islâmica, a lei no Afganistão, em Kabul um homem vai ser condenado à morte por se ter convertido ao cristianismo.
... chama-se Abdul Rahman, e foi denunciado pelos seus queridos pais. Acabo de ouvir na Tv5.
... chama-se Abdul Rahman, e foi denunciado pelos seus queridos pais. Acabo de ouvir na Tv5.
quarta-feira, março 22, 2006
A Cela
Ficava numa imensa planície que se estendia a perder de vista, rodeada de montanhas, e pontilhada aqui e além por enormes afloramentos graníticos. O Colonato Europeu da Cela, como inicialmente se chamou, foi durante muitos anos conhecido simplesmente por Cela, e não sei se para abreviar, ou se porque a designação "europeu" e "colonato" começavam a não soar muito bem. A ideia do colonato foi pensada e arquitectada, na década de cinquenta, por alguém que queria implantar no coração de Angola uma comunidade de agricultores portugueses que produzisse e reproduzisse, tanto quanto possível, uma agricultura e um estilo de vida semelhantes ao que havia na "metrópole", ou que sonhava que havia. O clima era óptimo e a terra fértil, chovia muito e com regularidade, e isso deve ter feito muita gente sonhar que poderia ser ali a "Terra Prometida". Claro que para isso tiveram que se afastar dali umas quantas aldeias, com os seus habitantes à frente dos buldozers. Mas os indígenas não se afastaram para muito longe, aquela era a sua terra e acabaram por ficar por perto, muitos deles agora a trabalhar para um patrão "europeu" que, se na sua terra cavava ele próprio o sustento com a enxada, com aquela mão de obra tão barata já não precisava de se cansar tanto.
Primeiro construiram-se umas aldeiasinhas simpáticas que tentavam reproduzir o que seria a aldeia ideal portuguesa. Os terrenos em volta foram depois medidos e emparcelados para mais tarde serem sorteados e distribuídos pelos futuros aventureiros lusitanos. Mas o que sería a tal "Aldeia Ideal Portuguesa"? Numa reunião preliminar, um arrojado urbanista que apresentou o seu projecto com casas com esgotos, água e luz, etc. foi liminarmente afastado pelo senhor Ministro que ouvia a proposta. Nem pense nisso, você está maluco? Casas para camponeses com água e luz e esses luxos todos? Isso não reproduz o espírito do que se quer fazer, além do preço que isso vai custar! Mas... senhor ministro, ainda tentou o pobre coitado argumentar, água canalizada é um mínimo, e não vai encarecer assim tanto... Já lhe disse, atalhou o ministro, e o custo até nem é o que mais importa aqui. Já imaginou uma fonte no meio, ou perto da aldeia, e ao fim do dia as mulheres com o cântaro à cabeça a irem buscar água à fonte? Que bonito que é? Isso é que é a imagem de uma verdadeira aldeia portuguesa!
Pois fizeram-se as casas, e as aldeias com nomes bem portugueses. Gradil, Alqueidão, ainda me lembro de algumas, mas nenhuma delas com água e com luz. Hoje chama-se Waku Kungo, que julgo ser o nome que sempre teve.
Primeiro construiram-se umas aldeiasinhas simpáticas que tentavam reproduzir o que seria a aldeia ideal portuguesa. Os terrenos em volta foram depois medidos e emparcelados para mais tarde serem sorteados e distribuídos pelos futuros aventureiros lusitanos. Mas o que sería a tal "Aldeia Ideal Portuguesa"? Numa reunião preliminar, um arrojado urbanista que apresentou o seu projecto com casas com esgotos, água e luz, etc. foi liminarmente afastado pelo senhor Ministro que ouvia a proposta. Nem pense nisso, você está maluco? Casas para camponeses com água e luz e esses luxos todos? Isso não reproduz o espírito do que se quer fazer, além do preço que isso vai custar! Mas... senhor ministro, ainda tentou o pobre coitado argumentar, água canalizada é um mínimo, e não vai encarecer assim tanto... Já lhe disse, atalhou o ministro, e o custo até nem é o que mais importa aqui. Já imaginou uma fonte no meio, ou perto da aldeia, e ao fim do dia as mulheres com o cântaro à cabeça a irem buscar água à fonte? Que bonito que é? Isso é que é a imagem de uma verdadeira aldeia portuguesa!
Pois fizeram-se as casas, e as aldeias com nomes bem portugueses. Gradil, Alqueidão, ainda me lembro de algumas, mas nenhuma delas com água e com luz. Hoje chama-se Waku Kungo, que julgo ser o nome que sempre teve.
A escrita em dia
Hoje fiz um melhoramento aqui no blog.
Acescentei este ali aos meus links. Bem feito!
Acescentei este ali aos meus links. Bem feito!
terça-feira, março 21, 2006
Pintar com as tripas.
Alguém me dizia, no seu desconhecimento, que o nome de Frida Kahlo lhe lembrava uma dor nos pés. Eu fui ver a exposição e vim de lá de rastos, mas não foi por me doerem os pés. Doía-me a alma. Não percam!
segunda-feira, março 20, 2006
Posso ter defeitos
"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não me esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo. E que posso evitar que ela vá à falência. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e tornar-me um autor da própria história. É atravessar desertos fora de mim, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da alma. É agradecer a Deus, todas as manhãs, pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um "não". É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo... "
Fernando Pessoa(Recebido de uma Dinamarquesa estrondosa)
Um abraço para Coruche!
(Numa parceria com a "Aldraba")
O Museu Municipal de Coruche
uma visita imperdível e obrigatória,
sobretudo para quem tiver crianças, ou alunos,
ou outra doença qualquer.
Mesmo que sejam descrentes,
a Igreja da Misericórdia, no centro da vila, merece uma visita.
E a capelinha de Santana do Mato também.
Por ainda se fazer ali a bênção do gado,
lá dentro não cheira a incenso, cheira a vacas.
Os ex-votos, na minúscula sacristia,
do tempo da guerra colonial, são, no mínimo, comoventes.
Fandango
O Grupo Etnográfico, com os seus fatos de época,
deliciou os visitantes com a sua música e as suas danças.
Para engrandecer, clic nas imagens.
O Museu Municipal de Coruche
uma visita imperdível e obrigatória,
sobretudo para quem tiver crianças, ou alunos,
ou outra doença qualquer.
Mesmo que sejam descrentes,
a Igreja da Misericórdia, no centro da vila, merece uma visita.
E a capelinha de Santana do Mato também.
Por ainda se fazer ali a bênção do gado,
lá dentro não cheira a incenso, cheira a vacas.
Os ex-votos, na minúscula sacristia,
do tempo da guerra colonial, são, no mínimo, comoventes.
Fandango
O Grupo Etnográfico, com os seus fatos de época,
deliciou os visitantes com a sua música e as suas danças.
Para engrandecer, clic nas imagens.
sexta-feira, março 17, 2006
Era dia de navio
Desde cedo que era grande a azáfama junto à praia e ao longo do cais. De cima de velhas camionetas descarregavam-se caixotes e sacos com as mais variadas mercadorias. Havia gente que corria apressada, havia abraços, encontros e despedidas, e uma enorme algazarra. Junto ao cais, grandes barcaças recebem a carga directamente das costas dos negros que depois levam até junto do navio que ficou fundeado ao largo por falta de fundo e de um porto capaz. Era uma operação lenta, com muitos percalços, que começava pela manhã cedo e só terminava lá para a noite.
Moçâmedes daquele tempo, era uma cidadezinha pequena, de casas baixas, encravada entre o deserto e o mar, e cujas ruas de traçado rectilíneo eram provavelmente ainda uma herança do Marquês. Na sua origem parece ter estado o desembarque naquela praia de uma centena de portugueses vindos de Pernambuco, no Brasil, nos finais do século dezanove. Uns anos mais tarde, uma linha de comboio, descendo das terras altas do interior, veio ali ter o seu términus. Confundindo-se com a maresia, havia no ar um permanente cheiro a peixe seco, que umas quantas fábricas junto à praia estendiam em longos tabuleiros ao sol.
Mas naquele manhã havia um cheiro diferente. Depois de uma longa viagem enfiados em vagões do caminho de ferro, uma manada de bois aguardava na praia a sua vez de embarcar. Tinham chegado de madrugada, e o Fiel, o pastor Mucubal que acompanhou o gado até ali, com a ajuda de uma vara comprida, ia mantendo os animais junto ao mar enquanto esperava ordens do branco. O senhor Correia. Foi ele que comprou os bois e engendrou todo aquele negócio de mandar o gado vivo para a "Metrópole", e procurava aflito o veterinário e o comandante do navio que veio a terra assistir ao embarque, mas que entretanto perdeu a noção das horas e do número de cervejas que já bebeu no bar do Hotel Moçâmedes. Desde a primeira vez que ali aportou que aquilo fazia parte do ritual da viagem. Ó Correia, isto são procedimentos obrigatórios nestas navegações de longo curso. Dizia ele ao afogueado comerciante quando este finalmente o encontrou a debater-se com um suculento bife com ovo a cavalo, e com várias garrafas de cerveja vazias à frente. Tenha calma homem, que o navio não sai sem mim. O veterinário já viu os animais, e a papelada está toda em ordem, fique descansado. Beba aqui uma cerveja com a gente.
A princípio não foi fácil convencer os animais a embarcarem. Mas com paciência e com os olhos vendados, um a um, o pastor lá os foi conduzindo por uma rampa de tábuas, com alguns trambolhões pelo meio, para dentro das barcaças. Depois, já encostadas ao navio, colocaram-se umas cilhas por baixo da barriga dos bois e içaram-nos com a ajuda dos paus de carga para o porão. O Fiel não sabia contar, mas isso não impedia que no meio daquelas dezenas de animais, se faltasse algum, ele não desse imediatamente por isso. Entretanto não deu foi pela partida do navio, já de noite. Tinha adormecido de cansaço entre os fardos de palha e os sacos de ração que tinham embarcado para que os animais não morressem de fome durante os quinze dias de clausura que tinham pela frente.
Ficou combinado com o comandante que o pastor acompanharia o gado até Lisboa, e que quando o navio voltasse ali, um mês ou dois depois, o trariam de volta. Parecia bom tipo, o comandante. Teve o cuidado de avisar a tripulação para que deixassem o pastor em paz, e não o chateassem por causa do seu ar primitivo. É que alguns estranharam demais a sua tanga, os seus enfeites e hábitos, e exageravam um pouco na curiosidade. Levou algum tempo até aprenderem a respeitar aquele homem, que quase não falava, mas sorria para toda a gente e executava as suas tarefas de tratador de gado com um desvelo fora do comum. Ao fim de vários dias ainda ninguém o tinha conseguido convencer a largar os bois por uns momentos e subir ao convés a ver o mar. Os balanços e o enjoo eram tão estranhos para ele como para os seus companheiros de porão, e por isso mantinha-se junto deles com a única preocupação de lhes ir mudando a palha e providenciar água e ração quando era preciso. Esquecido de si, o que ajudava a suportar a viagem, quando podia parar uns instantes, encostava-se, fechava os olhos e adormecia. Só quando teve que deitar borda fora um bezerro que nasceu morto é que subiu ao convés. Uma vaca que vinha grávida, com os sobressaltos da viagem, tinha abortado. Fiel ainda tentou em desespero salvar o bezerro, mas não foi capaz. Com o animal sobre os ombros, todo ensanguentado, subiu as escadas de ferro e lançou-o ao mar. Agora havia que tratar da mãe. Lavou-se num balde com água do mar, e ainda ofuscado com aquela luminosidade tão intensa, pediu para falar com o comandante. Queria explicar-lhe o sucedido, e pedir uma garrafa de vinho, tinto, de preferência. Quando avisaram o comandante foi a risota geral. Então vocês não percebem? Dizia um marinheito. A mim também, se me morre um parente, bebo para esquecer. E ria-se o alarve. Mas o comandante não se riu, e quis saber pormenores. Desceu ele próprio da ponte para se inteirar junto do Fiel, que lá explicou, que o vinho não era para ele, era para dar à vaca. Já tinha visto fazer o mesmo a uns brancos. Quando uma vaca estava fraca do esforço do parto, dava-se-lhe vinho para a animar, e costumava resultar. O comandante mandou buscar vinho da pipa da despensa e desceu com o pastor ao porão. Não que estivesse desconfiado, mas quis acompanhar aquele momento de perto. Era bom que os animais aguentassem a viagem toda com saúde... desde que não lhe bebessem o vinho todo, claro! Havia de se lembrar de escrever isto logo à noite no Diário de Bordo.
No dia seguinte voltou ao porão para verificar se a vaca estava de facto a arrebitar, e convidou o pastor a subir à ponte de comando com ele.
O Fiel olhava fascinado para todos aqueles aparelhos, sobretudo aquela roda gigante ali no meio, enquanto ouvia as explicações. É com isto que se guia o navio, dizia o comandante. E ele sorria, sorria sempre que lhe falavam, com um sorriso tão espontâneo que mesmo se às vezes não entendia o que lhe diziam, desarmava qualquer animosidade que pudesse surgir. Sempre com os olhinhos a brilhar, olhava para tudo e bebia cada uma das palavras. As que conhecia e as outras. Essas procurava fixá-las, mais tarde viriam provavelmente a ganhar um significado. Tinha olhado pelas vigias para o mar todo à volta, e não vendo vestígios de terra, perguntou como é que o comandante sabia por onde estava a ir. Este tentava explicar-lhe quando se ouviu uma voz por cima das cabeças, e o Fiel assustou-se. O comandante riu-se e apontou para o pequeno altifalante no tecto Isto é a voz do maquinista que sai por aqui. Ele fala lá em baixo da casa das máquinas e nós ouvimos aqui, assim não precisamos de andar sempre a correr para baixo e para cima. Também podemos falar para ele, queres ver? Aproximou-se dos comandos, ligou um interruptor e disse-lhe que falasse, para o Gervásio o poder ouvir lá na casa das máquinas. O Fiel ficou hirto sem saber o que fazer, ou dizer. Mas... falar o quê? Perguntou hesitante, ele que só falava o mínimo indispensável, e só quando tinha alguma coisa para dizer. E o comandante insistiu: Diz qualquer coisa. E ele, quase em sentido, virado para o altifalante diz: Qualquer coisa! As gargalhadas do Gervásio, que rebentaram do outro lado, eram tais... Ó comandante eu não acredito! que este acabou por desligar o som para não deixar o Fiel ainda mais embaraçado. Ele próprio também morto de riso, passou-lhe um braço sobre os ombros e encaminhou-o para a mesa das cartas ali ao lado. Vem, vou mostrar-te onde é que nós estamos... nós estamos aqui. E apontava para um ponto sobre a carta, onde estavam escritos uns rabiscos a lápis. Estás a ver, isto aqui é a terra, Moçâmedes, nós partimos daqui. E apontava um outro ponto mais a baixo. Já fizemos este caminho todo. E seguia o risco traçado na carta a lápis, desde o porto, e ia assinalando as várias marcas ao longo do risco. Estás a ver? Aqui é um dia, dois dias, três dias de viagem... E o Fiel, já mais descontraído, olhava a carta e depois olhava o mar em volta. O comandante tirou de uma caixa uma bússola de mão e saiu com ela para fora da ponte. Chega aqui que vou mostrar-te. E com a bússola na mão, explicava. Estás a ver aqui esta seta? Ela aponta sempre para o mesmo sítio. Ali é o norte. E ia rodando devagar para um lado, depois para o outro, e era verdade, a seta apontava sempre na mesma direcção, a proa do navio, neste caso, por mais voltas que ele desse. O Fiel quis experimentar e pegou na bússola, primeiro a medo, e depois divertido. Ué! Parece feitiço. E ria-se nervoso enquanto rodava, uma vez e outra, e outra ainda mais bruscamente, a ver se conseguia enganar a seta. Mas ela lá voltava sempre ao mesmo sítio. Esses brancos... dizia com espanto, e lembrava-se de já uma vez ter visto uma coisa parecida na mão de uns engenheiros com quem se cruzou. Tinham aparecido num jeep à procura de um caminho, e já nessa altura ele tinha ficado curioso. Mas isso é quê, afinal? Perguntava, intrigado com aquele mistério. Isto é uma bússola, e aponta sempre para o norte. Ali à frente da roda do leme está outra igual a esta, maior, e é com essa que a gente sabe para onde leva o navio.
... e como é que ela sabe e aponta sempre no mesmo sítio? O comandante tentava encontrar uma explicação simples. Esta seta aqui é um íman que é atraído pelo pólo magnético que fica perto do... Não, esta explicação, que lhe parecia tão simples, talvez não fosse a mais adequada. Calou-se uns instantes, e depois recomeçou. Sabes, daqui ainda não se vê, mas mais alguns dias e eu mostro-te. Há uma estrela, que a gente chama de estrela Polar, e que está sempre no mesmo sítio, nunca muda. Há de se ver à noite ali à frente. E apontava para a linha do horizonte por cima da proa. O Fiel ouvia-o com atenção, tentando perceber. Já viste que de noite as estrelas vão andando devagarinho de um lado para o outro do céu, não viste? O outro abanava a cabeça que sim. Mas há uma, essa tal estrela polar, que nunca se mexe, não sai do mesmo sítio, fica lá sempre no cimo da terra, que nós chamamos o Norte. Assim que ela aparecer no céu, daqui a uns dias, eu mostro-te. E houve uns homens antigos que descobriram que este metal, uma espécie de ferro, está sempre a apontar na direcção dessa estrela. Percebes? Ele dizia que sim com a cabeça, mas com pouca convicção. E depois de pensar um pouco perguntou. Mas então pra ir no "puto" é só seguir onde a seta diz? E o comandante concordava. É mais ou menos isso. Como estamos a navegar para norte, e a seta aponta para o norte... E o Fiel, que parecia ter descoberto a pólvora. Ah! Mas afinal é fácil, então. E calou-se por uns momentos pensativo para depois retomar o raciocínio. Mas então... e quando estás a vir do puto para cá? Perguntava intrigado. Aí a seta aponta para trás, disse o comandante. E como é que vais saber então aonde estás a ir se a seta aponta para trás? Tinha lógica. Olha Fiel, como tu vais voltar depois connosco lá da Metrópole para Moçâmedes outra vez, aí eu explico-te. Combinado? E vais ver daqui as uns dias, assim que ela aparecer eu mostro-te, a tal estrela Polar. O Fiel preparava-se para sair, mas lembrou-se, e apontando para a carta que tinha estado a ver há pouco, perguntou se podia voltar a ver. Espera, que eu tenho aqui outra melhor. E tirou de uma gaveta larga uma outra carta que põs por cima da primeira. Esta é melhor, olha aqui. Aquela de facto era diferente, além do mar e da linha da costa, tinha também um grande pedaço para o interior do território. Estás a ver Moçâmedes aqui? A tua terra é onde... como é que se chama a tua terra? E o Fiel, olhando com muita atenção para a carta, disse baixinho. Virei. O quê? O comandante não tinha percebido bem. A minha terra é no Virei. Naquele imenso deserto, além de duas pequenas cidades, só havia mais meia dúzia de pequenos povoados, e por acaso lá estava, uma letra pequenina e um pontinho no mapa. É isto aqui. E com um dedo por cima o comandante indicava o sítio, no meio do deserto, talvez a uns duzentos quilómetros do mar. Isto aqui é Moçâmedes, ali fica Sá da Bandeira, estás a ver? E esta linha aqui é a linha do comboio onde tu vieste com os bois na outra noite. O Virei é aqui mais em baixo. E o Fiel inclinava-se sobre o mapa a tentar vislumbrar algum pormenor, alguma coisa que conhecesse, e parecia um pouco desapontado. Mas não disse nada. Aqui parece perto... mas é looonge! Foi a única coisa que disse, prolongando o "ó" para sublinhar a distância. Agradeceu a visita ao comandante, e voltou para junto dos animais.
O cozinheiro, depois de lhe ter passado o enjoo inicial, insistia com o Fiel para que viesse comer à cantina junto com ele e com os outros, até tinha sido uma ordem do comandante, dizia ele. E depois de alguma resistência, ele lá acabou por ir. Mas só foi uma vez. Achou tudo muito barulhento. Falavam todos muito depressa, e todos ao mesmo tempo, enquanto comiam, e ele não percebia nada. Riam-se por ele comer com as mãos e de outras coisas que ele não percebeu nem se interessou por perceber. A partir daí, preferiu continuar sossegado no seu canto. Passou a ir à cozinha quando só lá estava o cozinheiro, normalmente a meio da manhã enquanto preparava o almoço. Bebia uma chávena de café que ele lhe oferecia e, quando calhava, ajudava-o a descascar as batatas. Quanto tempo faltaria ainda para chegar ao puto?
Nos trópicos anoitece cedo, e um fim de tarde em que o cozinheiro regressava à cozinha depois de ter estado a ajudar o Fiel a mudar a palha do gado, subiram juntos ao convés e ficaram a ver o pôr do sol encostados à amurada. Deviam estar por alturas do equador e era época de grandes calmarias. O navio seguia sem balanços num mar chão, e a única brisa era a provocada pela deslocação do navio. Com o cair da noite o tempo refrescava um pouco e o cozinheiro perguntou-lhe se ia desembarcar em Lisboa assim como andava, quase sem roupa. Fiel só tinha em volta da cintura uma coisa que o outro não percebia bem se eram uns calções, se uma tanga, se quê. Além disso lá na Metrópole faz frio, não é como África, insistia ele. Na minha terra à noite também é frio... Tenho casaco. Tinha de facto trazido um velho casaco já muito cossado, que lhe dava pelos joelhos. Mas aquilo não chega, não trouxeste mais nada? Nem sapatos... O outro não parecia dar muita importância ao assunto e continuou a olhar o mar com o nariz apontado ao vento. Era bom sentir aquele cheiro novo e húmido que não conhecia. Mas o que o maravilhava mesmo, era quando conseguia ver um peixe voador. Aí parecia uma criança. Ué! Olha só ali! E apontava e ficava a segui-lo fascinado até que ele mergulhasse de novo no mar.
Os dias passavam e o Fiel estava a ficar preocupado com a saúde dos animais. Alguns deles não comiam e estavam a ficar muito enfraquecidos, receava que começassem a morrer. Pediu que avisassem o comandante, e este foi pessoalmente ver o que se passava. Mostrou-lhe algumas vacas muito magras e prostradas que, por muito que se insistisse, se recusavam a comer. Porque seria? Talvez a tristeza, dizia o Fiel. Mas o comandante não ia nessa da tristeza, e pensava se não poderiam estar ali com alguma doença. Resolveu perguntar via rádio para S. Vicente, em Cabo Verde, que era o próximo porto por onde iam passar, se havia algum veterinário na ilha que pudesse vir ver os animais a bordo, logo que chegassem. E foi isso que aconteceu. O veterinário viu os animais no porão e descansou o comandante e o pastor. Não era nada de grave, dizia ele, era apenas devido às condições do transporte. Muito calor, pouco arejamento e desidratação. Não havia nada a fazer, a não ser fazer com que os animias bebessem muita água. E esperar. Esperar sobretudo que a viagem não levasse muito tempo.
O tempo ia arrefecendo aos poucos, conforme avançavam para norte, o que era bom para os animais, e o Fiel cada vez com mais frequência, quando subia ao convés, trazia vestido o seu casaco. Epá! Hoje o Fiel vem vestido a rigor, trouxe o fraque, parece que vai à ópera. Quando chegares assim vestido ao Cais do Sodré vai ser um sucesso. Riam-se os marinheiros e ria-se ele também, que não percebia o sarcasmo.
Uma manhã, quando entrou na cozinha para tomar o café, tinha uma surpresa à sua espera. Isso é para ti, disse-lhe o cozinheiro apontando para um embrulho a um canto. Vê lá se te serve. O Fiel pegou no embrulho, curioso, e com muito cuidado desembrulhou. Era uma trouxa de roupa. Viu primeiro as calças, que segurou com os braços esticados à frente, olhando admirado, e depois uma camisola de lã, e mais uma camisa, e um par sapatos. Ué, mas então... E ia revirando as peças uma a uma, até que às tantas, quando pegou nos sapatos e os colocou no chão, levantou-se e comparou. Foi aí que o cozinheiro pela primeira vez reparou. Quando olhou para aqueles pés, que nunca na vida tinham calçado um sapato... e viu a desproporção. Aquilo não eram pés, aquilo mais pareciam barbatanas. Eram uns pés larguíssimos, com umas solas curtidas por muitos anos e muitos quilómetros palmilhados. Epá, não vai ser fácil encontrar uns sapatos para ti. Não tinha pensado nisso.
Na tertúlia do Hotel Moçâmedes, na altura comentou-se bastante a ida do pastor Mucubal à "Metrópole", e agora era grande a curiosidade pelas peripécias por que teria passado um tal personagem em Lisboa. Talvez por isso, cerca dois meses depois, quando se soube que o navio que o levara estava de volta, o comité de recepção que se juntou no cais à espera para ver o Fiel não era muito diferente do que seria se estivesse a chegar o Presidente da República. Estava lá toda a gente, e não foram defraudados. É que o nosso homem, não por adivinhar a recepção, mas provavelmente por ter pressa de se pôr a mexer dali para fora, vinha logo à proa do primeiro escaler que veio a terra. E o comandante também vinha, fez questão de o acompanhar na despedida, talvez pressentindo que uns anos mais tarde se recordaria daquele passageiro como um dos mais ilustres que alguma vez teve a bordo. O Fiel vinha descalço, como sempre, mas para espanto de todos, vinha com um fato vestido, com gravata e tudo. Um bocado tosco, é verdade, mas digno, e sobretudo bem disposto. Nunca até hoje acreditou que aquela gente toda que ali estava era por sua causa. Só ficou um pouco embaraçado quando começaram a bater palmas e a gritar o seu nome quando saltava para o cais, mas disfarçou... estavam contentes, era normal, ele também estava contente por voltar à terra. Estenderam-lhe a mão para o cumprimentar, e ele deu alguns apertos de mão, sem saber a quem, sempre a sorrir. E quando alguém perguntou: Então Fiel, o que é que achaste lá de Portugal? Gostaste? O Fiel, muito direito, com o seu ar de sempre, pensou um pouco, e antes de se virar para se ir embora à sua vida, respondeu: Aqueles brancos, lá em Portugal, cagam dentro de casa!
Moçâmedes daquele tempo, era uma cidadezinha pequena, de casas baixas, encravada entre o deserto e o mar, e cujas ruas de traçado rectilíneo eram provavelmente ainda uma herança do Marquês. Na sua origem parece ter estado o desembarque naquela praia de uma centena de portugueses vindos de Pernambuco, no Brasil, nos finais do século dezanove. Uns anos mais tarde, uma linha de comboio, descendo das terras altas do interior, veio ali ter o seu términus. Confundindo-se com a maresia, havia no ar um permanente cheiro a peixe seco, que umas quantas fábricas junto à praia estendiam em longos tabuleiros ao sol.
Mas naquele manhã havia um cheiro diferente. Depois de uma longa viagem enfiados em vagões do caminho de ferro, uma manada de bois aguardava na praia a sua vez de embarcar. Tinham chegado de madrugada, e o Fiel, o pastor Mucubal que acompanhou o gado até ali, com a ajuda de uma vara comprida, ia mantendo os animais junto ao mar enquanto esperava ordens do branco. O senhor Correia. Foi ele que comprou os bois e engendrou todo aquele negócio de mandar o gado vivo para a "Metrópole", e procurava aflito o veterinário e o comandante do navio que veio a terra assistir ao embarque, mas que entretanto perdeu a noção das horas e do número de cervejas que já bebeu no bar do Hotel Moçâmedes. Desde a primeira vez que ali aportou que aquilo fazia parte do ritual da viagem. Ó Correia, isto são procedimentos obrigatórios nestas navegações de longo curso. Dizia ele ao afogueado comerciante quando este finalmente o encontrou a debater-se com um suculento bife com ovo a cavalo, e com várias garrafas de cerveja vazias à frente. Tenha calma homem, que o navio não sai sem mim. O veterinário já viu os animais, e a papelada está toda em ordem, fique descansado. Beba aqui uma cerveja com a gente.
A princípio não foi fácil convencer os animais a embarcarem. Mas com paciência e com os olhos vendados, um a um, o pastor lá os foi conduzindo por uma rampa de tábuas, com alguns trambolhões pelo meio, para dentro das barcaças. Depois, já encostadas ao navio, colocaram-se umas cilhas por baixo da barriga dos bois e içaram-nos com a ajuda dos paus de carga para o porão. O Fiel não sabia contar, mas isso não impedia que no meio daquelas dezenas de animais, se faltasse algum, ele não desse imediatamente por isso. Entretanto não deu foi pela partida do navio, já de noite. Tinha adormecido de cansaço entre os fardos de palha e os sacos de ração que tinham embarcado para que os animais não morressem de fome durante os quinze dias de clausura que tinham pela frente.
Ficou combinado com o comandante que o pastor acompanharia o gado até Lisboa, e que quando o navio voltasse ali, um mês ou dois depois, o trariam de volta. Parecia bom tipo, o comandante. Teve o cuidado de avisar a tripulação para que deixassem o pastor em paz, e não o chateassem por causa do seu ar primitivo. É que alguns estranharam demais a sua tanga, os seus enfeites e hábitos, e exageravam um pouco na curiosidade. Levou algum tempo até aprenderem a respeitar aquele homem, que quase não falava, mas sorria para toda a gente e executava as suas tarefas de tratador de gado com um desvelo fora do comum. Ao fim de vários dias ainda ninguém o tinha conseguido convencer a largar os bois por uns momentos e subir ao convés a ver o mar. Os balanços e o enjoo eram tão estranhos para ele como para os seus companheiros de porão, e por isso mantinha-se junto deles com a única preocupação de lhes ir mudando a palha e providenciar água e ração quando era preciso. Esquecido de si, o que ajudava a suportar a viagem, quando podia parar uns instantes, encostava-se, fechava os olhos e adormecia. Só quando teve que deitar borda fora um bezerro que nasceu morto é que subiu ao convés. Uma vaca que vinha grávida, com os sobressaltos da viagem, tinha abortado. Fiel ainda tentou em desespero salvar o bezerro, mas não foi capaz. Com o animal sobre os ombros, todo ensanguentado, subiu as escadas de ferro e lançou-o ao mar. Agora havia que tratar da mãe. Lavou-se num balde com água do mar, e ainda ofuscado com aquela luminosidade tão intensa, pediu para falar com o comandante. Queria explicar-lhe o sucedido, e pedir uma garrafa de vinho, tinto, de preferência. Quando avisaram o comandante foi a risota geral. Então vocês não percebem? Dizia um marinheito. A mim também, se me morre um parente, bebo para esquecer. E ria-se o alarve. Mas o comandante não se riu, e quis saber pormenores. Desceu ele próprio da ponte para se inteirar junto do Fiel, que lá explicou, que o vinho não era para ele, era para dar à vaca. Já tinha visto fazer o mesmo a uns brancos. Quando uma vaca estava fraca do esforço do parto, dava-se-lhe vinho para a animar, e costumava resultar. O comandante mandou buscar vinho da pipa da despensa e desceu com o pastor ao porão. Não que estivesse desconfiado, mas quis acompanhar aquele momento de perto. Era bom que os animais aguentassem a viagem toda com saúde... desde que não lhe bebessem o vinho todo, claro! Havia de se lembrar de escrever isto logo à noite no Diário de Bordo.
No dia seguinte voltou ao porão para verificar se a vaca estava de facto a arrebitar, e convidou o pastor a subir à ponte de comando com ele.
O Fiel olhava fascinado para todos aqueles aparelhos, sobretudo aquela roda gigante ali no meio, enquanto ouvia as explicações. É com isto que se guia o navio, dizia o comandante. E ele sorria, sorria sempre que lhe falavam, com um sorriso tão espontâneo que mesmo se às vezes não entendia o que lhe diziam, desarmava qualquer animosidade que pudesse surgir. Sempre com os olhinhos a brilhar, olhava para tudo e bebia cada uma das palavras. As que conhecia e as outras. Essas procurava fixá-las, mais tarde viriam provavelmente a ganhar um significado. Tinha olhado pelas vigias para o mar todo à volta, e não vendo vestígios de terra, perguntou como é que o comandante sabia por onde estava a ir. Este tentava explicar-lhe quando se ouviu uma voz por cima das cabeças, e o Fiel assustou-se. O comandante riu-se e apontou para o pequeno altifalante no tecto Isto é a voz do maquinista que sai por aqui. Ele fala lá em baixo da casa das máquinas e nós ouvimos aqui, assim não precisamos de andar sempre a correr para baixo e para cima. Também podemos falar para ele, queres ver? Aproximou-se dos comandos, ligou um interruptor e disse-lhe que falasse, para o Gervásio o poder ouvir lá na casa das máquinas. O Fiel ficou hirto sem saber o que fazer, ou dizer. Mas... falar o quê? Perguntou hesitante, ele que só falava o mínimo indispensável, e só quando tinha alguma coisa para dizer. E o comandante insistiu: Diz qualquer coisa. E ele, quase em sentido, virado para o altifalante diz: Qualquer coisa! As gargalhadas do Gervásio, que rebentaram do outro lado, eram tais... Ó comandante eu não acredito! que este acabou por desligar o som para não deixar o Fiel ainda mais embaraçado. Ele próprio também morto de riso, passou-lhe um braço sobre os ombros e encaminhou-o para a mesa das cartas ali ao lado. Vem, vou mostrar-te onde é que nós estamos... nós estamos aqui. E apontava para um ponto sobre a carta, onde estavam escritos uns rabiscos a lápis. Estás a ver, isto aqui é a terra, Moçâmedes, nós partimos daqui. E apontava um outro ponto mais a baixo. Já fizemos este caminho todo. E seguia o risco traçado na carta a lápis, desde o porto, e ia assinalando as várias marcas ao longo do risco. Estás a ver? Aqui é um dia, dois dias, três dias de viagem... E o Fiel, já mais descontraído, olhava a carta e depois olhava o mar em volta. O comandante tirou de uma caixa uma bússola de mão e saiu com ela para fora da ponte. Chega aqui que vou mostrar-te. E com a bússola na mão, explicava. Estás a ver aqui esta seta? Ela aponta sempre para o mesmo sítio. Ali é o norte. E ia rodando devagar para um lado, depois para o outro, e era verdade, a seta apontava sempre na mesma direcção, a proa do navio, neste caso, por mais voltas que ele desse. O Fiel quis experimentar e pegou na bússola, primeiro a medo, e depois divertido. Ué! Parece feitiço. E ria-se nervoso enquanto rodava, uma vez e outra, e outra ainda mais bruscamente, a ver se conseguia enganar a seta. Mas ela lá voltava sempre ao mesmo sítio. Esses brancos... dizia com espanto, e lembrava-se de já uma vez ter visto uma coisa parecida na mão de uns engenheiros com quem se cruzou. Tinham aparecido num jeep à procura de um caminho, e já nessa altura ele tinha ficado curioso. Mas isso é quê, afinal? Perguntava, intrigado com aquele mistério. Isto é uma bússola, e aponta sempre para o norte. Ali à frente da roda do leme está outra igual a esta, maior, e é com essa que a gente sabe para onde leva o navio.
... e como é que ela sabe e aponta sempre no mesmo sítio? O comandante tentava encontrar uma explicação simples. Esta seta aqui é um íman que é atraído pelo pólo magnético que fica perto do... Não, esta explicação, que lhe parecia tão simples, talvez não fosse a mais adequada. Calou-se uns instantes, e depois recomeçou. Sabes, daqui ainda não se vê, mas mais alguns dias e eu mostro-te. Há uma estrela, que a gente chama de estrela Polar, e que está sempre no mesmo sítio, nunca muda. Há de se ver à noite ali à frente. E apontava para a linha do horizonte por cima da proa. O Fiel ouvia-o com atenção, tentando perceber. Já viste que de noite as estrelas vão andando devagarinho de um lado para o outro do céu, não viste? O outro abanava a cabeça que sim. Mas há uma, essa tal estrela polar, que nunca se mexe, não sai do mesmo sítio, fica lá sempre no cimo da terra, que nós chamamos o Norte. Assim que ela aparecer no céu, daqui a uns dias, eu mostro-te. E houve uns homens antigos que descobriram que este metal, uma espécie de ferro, está sempre a apontar na direcção dessa estrela. Percebes? Ele dizia que sim com a cabeça, mas com pouca convicção. E depois de pensar um pouco perguntou. Mas então pra ir no "puto" é só seguir onde a seta diz? E o comandante concordava. É mais ou menos isso. Como estamos a navegar para norte, e a seta aponta para o norte... E o Fiel, que parecia ter descoberto a pólvora. Ah! Mas afinal é fácil, então. E calou-se por uns momentos pensativo para depois retomar o raciocínio. Mas então... e quando estás a vir do puto para cá? Perguntava intrigado. Aí a seta aponta para trás, disse o comandante. E como é que vais saber então aonde estás a ir se a seta aponta para trás? Tinha lógica. Olha Fiel, como tu vais voltar depois connosco lá da Metrópole para Moçâmedes outra vez, aí eu explico-te. Combinado? E vais ver daqui as uns dias, assim que ela aparecer eu mostro-te, a tal estrela Polar. O Fiel preparava-se para sair, mas lembrou-se, e apontando para a carta que tinha estado a ver há pouco, perguntou se podia voltar a ver. Espera, que eu tenho aqui outra melhor. E tirou de uma gaveta larga uma outra carta que põs por cima da primeira. Esta é melhor, olha aqui. Aquela de facto era diferente, além do mar e da linha da costa, tinha também um grande pedaço para o interior do território. Estás a ver Moçâmedes aqui? A tua terra é onde... como é que se chama a tua terra? E o Fiel, olhando com muita atenção para a carta, disse baixinho. Virei. O quê? O comandante não tinha percebido bem. A minha terra é no Virei. Naquele imenso deserto, além de duas pequenas cidades, só havia mais meia dúzia de pequenos povoados, e por acaso lá estava, uma letra pequenina e um pontinho no mapa. É isto aqui. E com um dedo por cima o comandante indicava o sítio, no meio do deserto, talvez a uns duzentos quilómetros do mar. Isto aqui é Moçâmedes, ali fica Sá da Bandeira, estás a ver? E esta linha aqui é a linha do comboio onde tu vieste com os bois na outra noite. O Virei é aqui mais em baixo. E o Fiel inclinava-se sobre o mapa a tentar vislumbrar algum pormenor, alguma coisa que conhecesse, e parecia um pouco desapontado. Mas não disse nada. Aqui parece perto... mas é looonge! Foi a única coisa que disse, prolongando o "ó" para sublinhar a distância. Agradeceu a visita ao comandante, e voltou para junto dos animais.
O cozinheiro, depois de lhe ter passado o enjoo inicial, insistia com o Fiel para que viesse comer à cantina junto com ele e com os outros, até tinha sido uma ordem do comandante, dizia ele. E depois de alguma resistência, ele lá acabou por ir. Mas só foi uma vez. Achou tudo muito barulhento. Falavam todos muito depressa, e todos ao mesmo tempo, enquanto comiam, e ele não percebia nada. Riam-se por ele comer com as mãos e de outras coisas que ele não percebeu nem se interessou por perceber. A partir daí, preferiu continuar sossegado no seu canto. Passou a ir à cozinha quando só lá estava o cozinheiro, normalmente a meio da manhã enquanto preparava o almoço. Bebia uma chávena de café que ele lhe oferecia e, quando calhava, ajudava-o a descascar as batatas. Quanto tempo faltaria ainda para chegar ao puto?
Nos trópicos anoitece cedo, e um fim de tarde em que o cozinheiro regressava à cozinha depois de ter estado a ajudar o Fiel a mudar a palha do gado, subiram juntos ao convés e ficaram a ver o pôr do sol encostados à amurada. Deviam estar por alturas do equador e era época de grandes calmarias. O navio seguia sem balanços num mar chão, e a única brisa era a provocada pela deslocação do navio. Com o cair da noite o tempo refrescava um pouco e o cozinheiro perguntou-lhe se ia desembarcar em Lisboa assim como andava, quase sem roupa. Fiel só tinha em volta da cintura uma coisa que o outro não percebia bem se eram uns calções, se uma tanga, se quê. Além disso lá na Metrópole faz frio, não é como África, insistia ele. Na minha terra à noite também é frio... Tenho casaco. Tinha de facto trazido um velho casaco já muito cossado, que lhe dava pelos joelhos. Mas aquilo não chega, não trouxeste mais nada? Nem sapatos... O outro não parecia dar muita importância ao assunto e continuou a olhar o mar com o nariz apontado ao vento. Era bom sentir aquele cheiro novo e húmido que não conhecia. Mas o que o maravilhava mesmo, era quando conseguia ver um peixe voador. Aí parecia uma criança. Ué! Olha só ali! E apontava e ficava a segui-lo fascinado até que ele mergulhasse de novo no mar.
Os dias passavam e o Fiel estava a ficar preocupado com a saúde dos animais. Alguns deles não comiam e estavam a ficar muito enfraquecidos, receava que começassem a morrer. Pediu que avisassem o comandante, e este foi pessoalmente ver o que se passava. Mostrou-lhe algumas vacas muito magras e prostradas que, por muito que se insistisse, se recusavam a comer. Porque seria? Talvez a tristeza, dizia o Fiel. Mas o comandante não ia nessa da tristeza, e pensava se não poderiam estar ali com alguma doença. Resolveu perguntar via rádio para S. Vicente, em Cabo Verde, que era o próximo porto por onde iam passar, se havia algum veterinário na ilha que pudesse vir ver os animais a bordo, logo que chegassem. E foi isso que aconteceu. O veterinário viu os animais no porão e descansou o comandante e o pastor. Não era nada de grave, dizia ele, era apenas devido às condições do transporte. Muito calor, pouco arejamento e desidratação. Não havia nada a fazer, a não ser fazer com que os animias bebessem muita água. E esperar. Esperar sobretudo que a viagem não levasse muito tempo.
O tempo ia arrefecendo aos poucos, conforme avançavam para norte, o que era bom para os animais, e o Fiel cada vez com mais frequência, quando subia ao convés, trazia vestido o seu casaco. Epá! Hoje o Fiel vem vestido a rigor, trouxe o fraque, parece que vai à ópera. Quando chegares assim vestido ao Cais do Sodré vai ser um sucesso. Riam-se os marinheiros e ria-se ele também, que não percebia o sarcasmo.
Uma manhã, quando entrou na cozinha para tomar o café, tinha uma surpresa à sua espera. Isso é para ti, disse-lhe o cozinheiro apontando para um embrulho a um canto. Vê lá se te serve. O Fiel pegou no embrulho, curioso, e com muito cuidado desembrulhou. Era uma trouxa de roupa. Viu primeiro as calças, que segurou com os braços esticados à frente, olhando admirado, e depois uma camisola de lã, e mais uma camisa, e um par sapatos. Ué, mas então... E ia revirando as peças uma a uma, até que às tantas, quando pegou nos sapatos e os colocou no chão, levantou-se e comparou. Foi aí que o cozinheiro pela primeira vez reparou. Quando olhou para aqueles pés, que nunca na vida tinham calçado um sapato... e viu a desproporção. Aquilo não eram pés, aquilo mais pareciam barbatanas. Eram uns pés larguíssimos, com umas solas curtidas por muitos anos e muitos quilómetros palmilhados. Epá, não vai ser fácil encontrar uns sapatos para ti. Não tinha pensado nisso.
Na tertúlia do Hotel Moçâmedes, na altura comentou-se bastante a ida do pastor Mucubal à "Metrópole", e agora era grande a curiosidade pelas peripécias por que teria passado um tal personagem em Lisboa. Talvez por isso, cerca dois meses depois, quando se soube que o navio que o levara estava de volta, o comité de recepção que se juntou no cais à espera para ver o Fiel não era muito diferente do que seria se estivesse a chegar o Presidente da República. Estava lá toda a gente, e não foram defraudados. É que o nosso homem, não por adivinhar a recepção, mas provavelmente por ter pressa de se pôr a mexer dali para fora, vinha logo à proa do primeiro escaler que veio a terra. E o comandante também vinha, fez questão de o acompanhar na despedida, talvez pressentindo que uns anos mais tarde se recordaria daquele passageiro como um dos mais ilustres que alguma vez teve a bordo. O Fiel vinha descalço, como sempre, mas para espanto de todos, vinha com um fato vestido, com gravata e tudo. Um bocado tosco, é verdade, mas digno, e sobretudo bem disposto. Nunca até hoje acreditou que aquela gente toda que ali estava era por sua causa. Só ficou um pouco embaraçado quando começaram a bater palmas e a gritar o seu nome quando saltava para o cais, mas disfarçou... estavam contentes, era normal, ele também estava contente por voltar à terra. Estenderam-lhe a mão para o cumprimentar, e ele deu alguns apertos de mão, sem saber a quem, sempre a sorrir. E quando alguém perguntou: Então Fiel, o que é que achaste lá de Portugal? Gostaste? O Fiel, muito direito, com o seu ar de sempre, pensou um pouco, e antes de se virar para se ir embora à sua vida, respondeu: Aqueles brancos, lá em Portugal, cagam dentro de casa!
"Puto" era uma expressão que se usava na época para designar Portugal, a Metrópole.
quinta-feira, março 16, 2006
"Um perfume de alfazema"
Já se distinguia ao longe a linha do horizonte, e com a primeira claridade da manhã, o velho trilho há muito abandonado, por onde, ziguezagueando entre pedras e mato, vem agora um homem caminhando. Andar, andar sempre, acertar a respiração com o passo e não pensar em mais nada. Com esforço, num passo já cansado, resistindo ao frio que o atormentou toda a noite, o homem só espera agora que nasça o dia para poder parar e descansar. Ouve-se ao longe um passarinho que canta, e logo outro, e mais outro de seguida o acompanha num alvoroço de asas e de cantos, anunciando o novo dia pelos campos. Sente os primeiros raios de sol que lhe aquecem a cara e lhe queimam os olhos. Abranda um pouco o passo e respira mais calmamente, mas o que o faz parar, por fim, é o chilrear dos passarinhos. Há quanto tempo não os ouvia? Não se lembra. Tem menos frio agora, e procura um sítio onde sentar-se e descalçar as botas. Quer descansar as pernas e dormir. As últimas horas de caminho fê-las como um sonâmbulo - três passos inspira, três passos expira, seguindo o trilho que o guiou toda a noite, evitando que andasse às voltas sem sentido. Entretanto afastou-se um pouco do caminho e arranca umas braçadas de erva com que improvisa uma cama, descalça-se e finalmente deita-se. Fez com o saco que trazia ao ombro um travesseiro, puxou o chapéu sobre os olhos, e adormeceu.
Agora voava... Vencida a estranheza inicial, como se não tivesse peso, podia elevar-se do chão e voar. E ali do alto onde voava agora, tudo o que via era novo. Fascinado, é quando procura um caminho, qualquer coisa lá em baixo que lhe diga onde está, que descobre o carreiro e se vê de repente a si próprio naquela madrugada... Uma súbita vertigem e logo de seguida a aflição da queda. Num segundo debate-se sem perceber o que lhe está a acontecer. Estou a cair! Estou a cair! Grita e agita-se, e de repente acorda...
Aflito e a transpirar, afasta o chapéu da cara, mas não consegue abrir logo os olhos por causa da intensa claridade. Quanto tempo terei dormido? Nesse preciso instante, um passarinho acabava de pousar num arbusto ali muito perto dele, e olhava-o curioso. O ramo ainda abanava, e é isso que lhe prende a atenção enquanto vai entreabrindo os olhos, adaptando-os à luz. Ele e o pássaro olham-se com a mesma estranheza e a mesma curiosidade.
Eu estava a voar quando acordei! Lembrou-se. Já tinha tido sonhos estranhos de outras vezes, mas raras vezes se lembrava deles, e nunca, ao acordar, os relacionava com a realidade. Mas agora tinha ali por cima da cabeça aquele passarinho a olhar para ele, e a coincidência de se encontrarem ali naquele instante, ele vindo de um sonho em que voava, e um pássaro, vindo talvez de um voo em que sonhava.
Estaria a delirar? Adormecera exposto ao sol, e agora com certeza delirava. Arrastou-se um pouco para abrigar a cabeça à sombra, fechou os olhos e tentou reconstituir o sonho. Mas do que se lembrava, era que o sonho tinha abruptamente terminado no preciso instante em que tocara a realidade. Como uma bola de sabão que se desfaz quando a tocamos. Dois mundos que não podiam existir em simultâneo, pensou. Seriam os pontos em que se tocam, passagens para outras dimensões? Tentou por algum tempo ainda manter-se naquela fronteira entre o sonho e a vigília mas, sentia a boca seca e na barriga aquele aperto da fome que não lhe dava sossego. Tinha caminhado toda a noite e todo o dia anterior, e só tinha parado para beber água quando atravessou um ribeiro, já muito para trás. Aí, tinha aproveitado para descansar um pouco e encher uma garrafa que trazia no saco. Virou-se à procura da garrafa, e olhou para cima. O pássaro ainda lá estava, no mesmo sítio, agora entretido a coçar as penas com o bico, e assim que o viu mexer-se, ficou de novo atento aos seus movimentos. Ele desrolhou a garrafa e, antes de levá-lá à boca, encheu primeiro a tampinha, à laia de copo, e esticou o braço colocando o pequeno bebedouro ao seu lado, o mais afastado que pôde, a convidar o passarinho a beber também. E bebeu a água que restava na garrafa. O passarinho tinha o olhar fixo naquele minúsculo espelho de água que brilhava lá em baixo, mas não se mexeu no seu poleiro. Seria uma armadilha para o atrair ao pé do homem? Não, os animais não pensam assim, assim pensam os humanos. Virou-se de lado e tapou a cara com o chapéu, deixando por baixo uma nesga por onde podia ver a tampinha à sua frente, à distancia de um braço estendido.
Fruto de uma longuíssima experiência, a desconfiança dos pássaros possibilitou-lhes uma existência tão antiga como a dos dinossauros. E a capacidade de voarem permitiu-lhes até sobreviverem ao Dilúvio. Se pudesse escolher um outro animal para reencarnar, seria um pássaro, pensou. Não iria fazer mal àquele. Fazia apenas uma tentativa de aproximação amigável, uma pequena oferta em troca de uns momentos de companhia. Será que o animal entendia? Se vencesse o medo e descesse até ali ao pé dele para matar a sede, ficaria contente. Prometeu deixar-se ficar completamente imóvel, para não o assustar, e mostrar-lhe que podia confiar num ser humano.
Quando abriu os olhos percebeu que tinha novamente adormecido. Por uns instantes talvez... e reparou com espanto que a água tinha desaparecido. O pássaro devia ter pousado ali enquanto ele dormia, e bebeu-a sem que ele desse por isso. Mas a grande surpresa, é que mesmo ao lado da tampinha da garrafa, estava um pequenino fruto vermelho alaranjado, pouco maior que uma cereja. Ergueu-se e olhou em volta, a ver se havia sinais do pássaro, mas não, nada. Pegou no fruto e examinou-o com cuidado, tinha apenas uma pequeno golpe que deve ter sido feito com o bico, ao traze-lo. Era um fruto muito bonito, com uma pele sarapintada de pequenas grainhas brancas. Dir-se-ia um morango, não fosse ser tão redondinho. Hesitou em mete-lo à boca. Cheirou-o primeiro e depois tocou com a ponta da língua no sítio que tinha sido ferido pelo pássaro, e achou que era doce. Devia ser comestível, portanto. Já não comia nada há bastante tempo, e isto avivou-lhe os sentidos. Seria venenoso? A natureza, que é sábia, pôs nas coisas venenosas sabores normalmente pouco convidativos. E com este raciocínio acabou por vencer a hesitação, e trincou-o. Uma metade primeiro, que saboreou lentamente, enquanto observava a outra metade com minúcia, entre dois dedos, bem em frente do nariz. Tinha umas pequenas grainhas mas era delicioso. Que fruto seria aquele? Meteu o resto na boca e levantou-se, saboreando a novidade e tentando localizar o pássaro. Mas em toda a volta quase não havia árvores, a vegetação era pouco mais que rasteira, unicamente uns pequenos arbustos aqui e além que eram no máximo da altura de um homem. Aquilo só podia ser fruto de um daqueles arbustos ali das redondezas. Resolveu retomar o caminho. Calçou-se, amarrou o casaco à cintura, pegou no saco e retomou o velho trilho, observando os arbustos na esperança de encontrar mais frutos daqueles.
Ainda com o sabor doce na boca, ia andando e pensando no pássaro. Por onde andaria ele agora? Será que os pássaros têm memória? E se o visse, será que o reconheceria? Os pássaros parecem todos iguais, dentro de cada espécie, claro. E aquele o que era? Um pardal, talvez. Também podia ser, deixa ver... e foi enumerando mentalmente todos os tipos de aves de que se lembrava. Pardais, pombos, perdizes, codornizes... Como seria que as aves entre elas se reconheciam? Como é que um pardal sabe que é um pardal? E lembrou-se que os cucos deixam os seus ovos a chocar nos ninhos de outras aves, tinha visto um filme sobre isso. Um filme...é verdade! E nisto parou. Há quanto tempo foi isso? E aonde foi? Surgiam-lhe imagens desconexas que não conseguia organizar e dar sentido. Uma súbita tontura e era a guerra, as mortes e o sangue. O hospital, tudo branco, as batas brancas... e ele amarrado à cama. Respirou fundo. Uma, duas, três vezes, e deu por si ali parado sem saber o que fazia, e o que fazer. Já antes se tinha sentido assim, e disse para si próprio: Nada de pânico, nada de pânico, continua o teu caminho! E lentamente foi retomando a marcha, tentando fixar-se na respiração, sincronizando-a com as passadas. Era mais fácil assim. Andar, andar sempre e respirar.
O gosto que lhe ficara na boca lembrou-o que tinha de se alimentar. Sentia-se fraco, não iria aguentar naquele estado mais uma noite de marcha. Aquele trilho ia dar a algum lado com certeza. Mais adiante, onde o terreno subia ligeiramente para a direita, havia um pequeno arvoredo. Decidiu-se e resolveu meter por entre o mato, naquela direcção. Foi-se aproximando e, observando os arbustos, reparou que num, dissimulado entre os outros, havia de facto uns frutosinhos muito maduros que percebeu logo serem iguais ao que o pássaro lhe tinha levado. O arbusto não era grande, mas estava carregado deles. Arrancou o primeiro que meteu imediatamente na boca, saboreando com gosto. Depois comeu outro, e mais outro ainda, já com alguma sofreguidão. Os mais avermelhados eram os mais maduros, e mais doces e sumarentos, percebeu. E não só matavam a fome como lhe aliviavam também a sede. Às tantas, com a boca já tão atafulhada que lhe escorria suco pelo queixo até ao pescoço, achou que devia parar aquela orgia. Percebeu que em breve se iria fartar. Havia ainda tantos frutos, porquê aquela sofreguidão? Podia encher os bolsos e continuar o caminho com uma reserva para o resto da viagem. E foi isso que fez. Podia meter a mão ao bolso quando quisesse, enquanto caminhava, se lhe apetecesse comer mais. De momento estava cheio, ou melhor, já estava a ficar enjoado.
De regresso ao caminho, mal tinha retomado o ritmo da marcha quando começou a sentir o estômago às voltas, agoniado. Não devia ter comido tanto. Pensou que a qualquer momento podia meter os dedos à boca e vomitar, mas o pior eram as tonturas que começava a sentir, e que não queria acreditar que fossem por causa da fruta. Seriam aqueles frutos venenosos? Ter-se-ia ele envenenado estupidamente a si próprio? Cada vez se sentia mais tonto e com a vista cada vez mais embaciada. Tentou ainda alguns passos, mas já não conseguiu. Caiu de joelhos, e vomitou. Aquela polpa adocicada ali regurgitada à sua frente era um nojo, e ele naquela posição uma vergonha. Parecia-lhe que vomitara quilos de fruta. Cabrão do pássaro, hein! Pensava alto. Tentava levantar-se e via tudo à roda. Fez um esforço para se aguentar em pé, mas em vão. Tropeçou nas próprias pernas e caiu. Deixou-se estar assim por uns momentos, deitado, tentando perceber o que se estava a passar. Seria o efeito do veneno?
E finalmente percebeu que estava bêbado. Não é que fosse novidade para ele, mas sempre associara a bebedeira à bebida e ao álcool, e agora só tinha comido fruta... Coisa estranha aquela! Tentava ter alguma lucidez no raciocínio, mas não era fácil. Vou ficar aqui sossegado, à espera que isto passe. Não é a primeira vez que apanhas uma buzana, pá. Isto passa... e também já vomitaste, o que alivia bastante. Deixa-te estar, que estás bem assim. Falava alto consigo próprio. E o sacana do pássaro, hein? Filho da puta, um gajo ali cheio de amor pelos bichos, se calhar o bichinho tem sede, e tal... e o manhoso fodeu-me! E depois de uma pausa, continuava. Mas olha que até tem graça! O sonso vem de mansinho, apanha-me a dormir, deve ter percebido que um gajo estava a precisar de alimento e pimba. Com a treta de me adoçar a boca, lixou-me.
E assim continuou deitado de barriga para o ar, olhando o céu às voltas, enquanto perorava. Mas olha que o sacana foi subtil. Se fosse um passaroco malandro ou mal agradecido podia-me ter cagado em cima. Ou pior ainda, vir-me bicar um olho, foda-se! Mas este teve graça, o sacana. Será que também há humor nos animais? Se eles brincam... Com a treta de retribuir a gentileza da água, deve ter pensado: Vou dar-lhe uma coisa doce, o gajo vai gostar, vai à procura de mais e eu vou ficar aqui a ver o gajo rebentar. Bem visto... Se calhar até está para aí escondido a ver-me nesta triste figura, o cabrão.
E com a bebedeira, delirava. Virou-se de lado e tentou descansar, agora já com alguma simpatia pelo passarinho, e até com admiração pelo elaborado raciocínio que descobria no animal. Mas que raio de merda é que eu terei comido? E foi a última coisa que conseguiu dizer para si próprio, uns momentos antes de adormecer novamente.
Agora voava no meio de um enorme bando de pardais do campo, e reparava que havia uns quantos que, à parte, se destacavam formando verdadeiras esquadrilhas que faziam as acrobacias mais incríveis que se podiam imaginar. E eram vários os grupos de esquadrilhas que se desafiavam, fazendo loopings e descidas vertiginosas para ver quem eram os melhores. Era um mundo fascinante de desafio permanente e de liberdade.
Ele não se destacava no bando. Era um grupo muito grande que voava sobre as cearas, onde faziam grandes razias. Os outros, os kamikazes, como ele lhes chamava, voavam à parte, mais alto e em bandos mais pequenos. Faziam voos muito velozes, com acrobacias fantásticas em volta dos campos, distraindo eventuais predadores. E em caso de perigo, avisavam rapidamente os companheiros que comiam calmamente lá em baixo. Eram jovens machos, normalmente. As fêmeas e os mais velhos podiam assim comer tranquilamente os seus grãosinhos de trigo ou do que fosse, e carregarem as ervas para os ninhos.
Mas os kamikazes fascinavam-no. Eram velozes e destemidos e, à parte o exercício do voo, em que eram exímios, não ligavam a mais nada. A não ser acasalar. Depois das suas enumeras façanhas, não lhes era difícil cortejar e seduzir as fêmeas.
Nunca tinha feito parte de nenhuma daquelas esquadrilhas. Por várias vezes tentou isoladamente efectuar loopings e voltas rápidas, e algumas outras manobras que já tinha observado e que lhe pareciam impossíveis de realizar. Mas corriam-se imensos riscos em voos isolados, e o maior de todos era o ficar-se muito vulnerável a qualquer predador. Ele sabia isso. A grande protecção era a presença do bando. Todos protegem todos. O bando era praticamente invulnerável. É certo que por vezes desapareciam alguns, mas o bando permanecia.
A ele fascinavam-no as proezas do voo, e pertencer a um daqueles pequenos grupos era o seu maior sonho. Ser capaz de fazer o mesmo e ser respeitado pela sua audácia. Não desistia da ideia de o conseguir um dia.
Uma manhã em que ainda estavam quase todos às voltas nos ninhos, resolveu sair sozinho e seguiu à distância um grupo de Kamikazes que costumava treinar muito cedo, aproveitando o fresco da manhã. Poisou num ramo bem alto e ficou a observar de longe. A formação da esquadrilha era perfeita. À frente vai um líder que dirige os movimentos de todos os outros e tudo o que ele fizer os outros repetem instantaneamente, sem nenhum lapso de tempo, nem uma fracção de segundo sequer. Volta à direita, agora à esquerda e para cima, muda de velocidade, desce, acelera, tudo é feito em bloco e ao mesmo tempo, como se de um só corpo se tratasse. Reparou que a posição de líder ia alternando entre todos, com uma sequência que lhe escapava. Qualquer um podia tomar a dianteira e, a partir daí, tudo dependia da capacidade inventiva do líder e da sua experiência para dirigir o grupo até aos limites da aerodinâmica. Essa alternância tinha a vantagem de repartir o maior esforço por todos. Os que vão nas linhas de trás voam com muito menos esforço porque não têm que enfrentar a mesma resistência do ar. Por vezes, com muito treino, é possível voar quase sem bater as asas, aproveitando o efeito de sucção dos da frente. Era lindo de ver!
Tão absorvido estava a ver aqueles exercícios que não reparou num outro mais velho que também observava num ramo ali perto.
- É bonito de ver não é? Só depois do outro falar é que reparou que ele ali estava. Olhou-o e concordou com a cabeça.
- Mas isto pode acabar um dia. Pode ser que um dia não seja mais possível voar assim.
- Porque é que diz isso?
- Achas que só a comer grãosinhos de trigo se consegue fazer aquilo que eles fazem?
- Mas é uma questão de alimentação? Será assim um esforço tão grande?
- Não é de esforço físico que eu estou a falar, a maioria das aves só come grãos e não é por isso que deixa de voar. É de um outro estado de consciência que eu estou a falar, de outra percepção da realidade que lhes permite aquela comunicação entre eles e aquela eficiência.
- Não estou a perceber...
- Tu não és daqui pois não? E com um ligeiro bater de asas veio pousar no mesmo ramo, quase ao seu lado.
- ... só estou fascinado com aquelas acrobacias, era uma coisa que gostava de ser capaz de fazer. Porque voar sozinho e ir para onde eu quero não tem novidade nenhuma para mim.
Depois de uns segundos calado, o mais velho continuou.
- Tem de se passar por várias provas, antes de se ser capaz de fazer aquilo.
- E que provas são essas? Perguntou curioso.
- Para começar, tens de provar que és capaz de arriscar a tua própria vida sozinho em benefício do grupo, e com a certeza de que não terás ajuda de ninguém. Só poderás contar contigo próprio, com a tua coragem e a tua inteligência.
- E se eu aceitar, o que é que tenho que fazer?
- Aos principiantes, a primeira tarefa que lhes é confiada é procurarem alimento para aqueles que estás ali a ver. Sem essa alimentação eles não têm as capacidades que lhes permitem aquelas proezas.
- E que alimento é esse? É muito difícil de encontrar?
- Depende do engenho de cada um. Para uns será mais fácil, para outros mais difícil. Alguns pagam com a própria vida. E deu um pequeno impulso, fazendo balouçar o ramo, bateu as asas e voou. O outro não podia perder aquela oportunidade, precisava de saber mais. O seu sonho parecia envolto num segredo e dificilmente voltaria a estar tão perto, caso o deixasse ir-se embora. Resolveu ir atrás dele.
Reparou que o outro, provavelmente por ser mais velho e para não fazer grande esforço, aproveitava na perfeição as correntes de ar e quase não tinha que bater as asas para voar. A mais pequena brisa ascendente era por ele percebida antecipadamente. Não voava muito depressa, mas o seu voo sereno parecia um bailado. Viu que estava a ser seguido mas não alterou em nada o seu caminho, deixou que o jovem se fosse aproximando e reparou que, aos poucos, ele lhe ia imitando os movimentos. Ao fim de algum tempo, depois de já estarem a voar praticamente lado a lado, sempre a subir, aproveitando o vento quente, resolve quebrar o silêncio.
- Não há perigo em vir aqui para tão alto?
- Perigo há sempre, sabes que viver é perigoso. Queria mostrar-te a paisagem daqui de cima. E subiram mais um pouco. A vista dali era soberba! A Terra agora parecia um disco redondo lá em baixo, e em volta, todo o horizonte azul.
- Todos esses campos que vês, sempre nos deram de comer com fartura, nunca houve falta de comida, podíamos ir rodando constantemente, variando a alimentação, e ninguém se importava com isso. Depois, parece que alguém descobriu a maneira de fazer fogo, mais tarde os pesticidas e os venenos, e desde aí tudo tem vindo a mudar. Uma verdadeira praga! Às armadilhas e aos espantalhos até nos habituámos, foram muitos anos de convivência, já quase que achávamos graça. E ultimamente ouve-se falar muito de cereais trangénicos. Será que eles conhecem todas as consequências? As fêmeas que se alimentarem com essas plantas, podem até ficar gordinhas, mas em breve deixarão de poder ter filhos. Dentro de algumas gerações, se quiseres encontrar alguém como tu, terás de ir a um jardim zoológico, ou a alguma loja de pássaros para ver os teus irmãos fechados, muitas vezes com as asas cortadas, enfiados naquelas gaiolas horríveis que eles acham muito bonitas e decorativas, a comer alpista de manhã à noite e a gritar por socorro. Eles acham que estão a cantar, não sabem que estão a pedir ajuda! O que os vale é que muitos morrem rapidamente. O futuro pode vir a ser sombrio...
- E o tal alimento especial de que há bocado falava?
- Já lá vamos... Com as coisas que lá embaixo teimam em fazer, a maioria dos frutos silvestres, que sempre existiram, estão aos poucos a desaparecer. Arrancam-se plantas sem sequer saber primeiro que plantas são, e para que servem. Arrasam tudo! Chegam a cobrir de cimento sítios onde antes havia plantas que lhes podiam ter aliviado o reumatismo ou evitado o cancro. A fruta que comem é cultivada em campos a perder de vista, como fábricas, em série, tudo igual, tudo com o mesmo sabor. Até se gabam que não têm bicho, e que não estão bicadas por nós. Pois pudera! E dos frutos silvestres que estão a desaparecer, há alguns que devido às suas propriedades raras correm riscos maiores, por ignorância ou por cobiça, já quase não se encontram nos seus lugares de origem. Vês aquelas pedras ali, junto àqueles montes lá ao fundo? Ali ainda há medronhos. O sítio é bastante difícil de encontrar para quem vai por terra, e é isso que tem ajudado à sua protecção. Só lá vai gente muito raramente, passam-se anos sem aparecer ninguém por ali.
- Então e isso é bom? perguntou o outro, cada vez mais interessado.
- Depende...
- Depende... Depende de quê? Não estou a perceber.
- Depende se esses raros caminhantes encontram medronhos ou não, e da maneira depois como os comem.
Tinham começado a descer. Havia o perigo das águias, e desciam o mais silenciosamente possível, evitando grandes movimentos que pudessem chamar a atenção sobre eles, em direcção ao tal sítio das pedras. A descida foi rápida. Depois de ter feito sinal para que o outro fosse olhando para trás também, porque as águias são muito manhosas e muitas vezes atacam de surpresa vindas de cima, o mais velho seguia à frente cortando o ar como uma flecha. Era admirável a forma como colocava as asas e a atitude do corpo para reduzir ao mínimo o atrito. Acabaram por pousar suavemente no cimo de um pequeno arbusto, depois de uma curta volta de reconhecimento. Havia no ar um perfume doce que ele não percebeu imediatamente de onde vinha, nem o que era. Ainda estava a refazer-se da rápida descida atrás do mestre - era assim que ele começava a ver o mais velho - e tentava identificar aquele aroma desconhecido que o envolvia.
- São medronhos. Disse o outro, enquanto observava a paisagem em volta.
Só então reparou que por baixo deles, dissimulados pela folhagem, havia imensos frutos que devido ao sítio em que tinham pousado, não eram visíveis imediatamente. Deu um pequeno salto para um outro ramo mais abaixo, e aí sim, ficou mesmo em frente a um dos frutos que quase podia tocar com o bico. Sentiu-se como que hipnotizado, pela cor e pelo aroma que libertava. Àquela distancia quase entontecia, e era enorme!
- Posso provar? Perguntou guloso.
- Não te aconselho. Esta fruta tem propriedades mágicas, mas não pode ser comida assim como tu queres, é altamente tóxica. Quem não sabe, e se deixa seduzir e levar pelos sentidos, não vai esperar muito tempo para se arrepender. Consumido assim, pode matar. E depois de uma pausa, continuou:
- É raro passar gente por aqui, é preciso ter paciência... Bem, agora que já ficaste a saber o que é, vamos embora que estamos longe e já se faz tarde. E bateu as asas para iniciar o regresso.
Ele ainda hesitou, enfeitiçado que estava pela descoberta e pela terrível tentação, mas acabou por regressar também atrás do outro.
Voava com a estranha sensação que voltaria ali um dia. Seguia o mestre, batendo as asas em silêncio, mas havia uma pergunta que lhe atravessava o pensamento. Se os frutos eram tóxicos, e se matavan quem os comesse, para que serviriam então? Porque seriam assim tão fascinantes se não poderiam ser tocados? Resolveu esperar. Já tinha percebido que o outro gostava daqueles silêncios e não quis mostrar-se demasiado curioso. Quando achasse que era oportuno dizer alguma coisa, di-la-ia com certeza. Entretanto o mestre, parecendo que lhe lia os pensamentos, fez uma viragem em direcção a um pequeno ribeiro que passava ali perto.
- Vamos descansar um pouco ali, e refrescar-nos.
Pousaram tranquilamente, juntos, sobre uma pedra perto da água, mataram a sede e sacudiram as penas.
- Ficaste curioso com os medronhos, não foi? Sabes que alguns frutos e plantas da natureza, têm poderes estranhos que é preciso perceber e saber aproveitar, ou rejeitar. Mas todos acabam sempre por ter alguma razão de ser. Uns são muito bons, e outros podem ser muito maus. Se seguir-mos às cegas os nossos apetites, sem pensar e sem aproveitar o conhecimento que outros antes de nós adquiriram, podemos dar-nos mal. No caso dos medronhos, há animais que os podem comer e não lhes faz mal, se não abusarem. Têm os estômagos diferentes dos nossos e digerem-nos de forma diferente. Mas se os comerem em grande quantidade, acabam por rejeitá-los. Acontece muito a quem não sabe, acabam por vomitar aquilo que não foi absorvido. E depois de uma pequena pausa, acrescentou:
- E aí entramos nós...
O outro, que seguia muito atento a explicação, não percebeu.
- Entramos nós, como?
- Entramos nós. Assim já podemos comer os medronhos. Falava tranquilamente, como se da coisa mais natural do mundo se tratasse. Os frutos rejeitados, sofreram entretanto naquele estômago uma transformação que lhes eliminou as toxinas que nos fazem mal. O que permite que assim já os possamos comer sem perigo. Estou a ser claro?
Ele estava sem palavras, nem conseguia olhá-lo de frente. Tentava controlar a sensação de nojo que lhe tinha surgido subitamente. Devia estar a brincar! Comer a fruta que tinha sido acabada de vomitar? Não queria acreditar!
- Sim... claro! Foi a única coisa que conseguiu dizer, continuando a olhar para o outro lado, enojado. E que tal são os medronhos depois de serem assim... rejeitados? Ainda conseguiu perguntar, disfarçando o ar de nojo e tentando fazer crer que achava tudo aquilo normal.
- É um verdadeiro manjar dos príncipes! É altamente energético, e desperta capacidades extra-sensoriais fora do comum. São essas qualidades que tornam alguns de nós capazes de executar aquelas proezas que tens visto. Claro que perdem parte do açúcar, mas continuam a ser muito saborosos.
Ele não queria acreditar no que ouvia! O mestre afinal estava a revelar-se o grande mestre do embuste. Devia ter logo percebido quando lhe perguntou se não era de cá... Deve ter começado logo aí a preparar a história. E esteve quase para se virar para ele e perguntar: Olhe lá, ó mestre. Os tais ditos sobredotados não serão gambuzinos disfarçados de pardal? Mas resolveu que não, iria ouvir o resto da história até ao fim. Aquilo só podia ser uma grande partida.
- Pelo que estou a perceber, para se ser iniciado, a primeira tarefa será então ir procurar medronhos acabados de ser vomitados. É isso?
O mestre abanou a cabeça, afirmativo.
- E como deves saber, nestas regiões já não há macacos, que eram uns animais muito pacíficos e grandes apreciadores de medronhos. Eram muito nossos amigos. Mas há muito tempo que foram para outras paragens, só cá ficaram uns outros muito menos espertos e que entretanto mudaram de nome. Agora chamam-se humanos, mas não mudaram muito, à parte o andarem todos tapados com panos, que nem se consegue distinguir os machos das fêmeas. E são muito manhosos. Também são grandes apreciadores de medronhos, que muitas vezes apanham mas não comem, dando-lhes antes um tratamento que os transforma numa bebida que eles apreciam muito. Chegam mesmo a ficar de cabeça perdida...
- Segundo ouvi dizer, arriscou o jovem pardal, esses tais humanos, quando apanham algum de nós, ou matam e comem, ou enfiam numa gaiola. Porque será?
Tinha resolvido ver até onde é que ia a história.
- Não sei explicar. Disse o outro muito sério. Talvez porque, para além de comerem outros animais, o sofrimento que lhes infligem os alimente também... ou lhes sirva para qualquer outra coisa, não sei. Não tenho explicação. E ficaram por alguns momentos pensativos.
Mas o assunto não estava esgotado.
- Eles até constróem umas gaiolas onde se prendem também uns aos outros! São um perigo, esses humanos!
- Não deve ser então tarefa fácil andar à procura por esses campos de alguém que tenha comido medronhos a mais, e depois ficar ali à espera que os vomite. Com o amor que eles nos têm, se nos aproximamos muito estamos fritos.
- Literalmente. É mesmo um dos petiscos que eles mais apreciam, passarinhos fritos.
O outro teve um arrepio.
- Qual é então a melhor maneira de se conseguirem esses tais... "medronhos tratados"? Não haverá outra forma? Perguntou com o ar mais sério que conseguiu.
- Há mais seres que gostam deste fruto, menos falsos que os humanos e dos quais nos podemos aproximar facilmente. Mas esses, de um modo geral são mais sensatos e, quando percebem que algo lhes vai fazer mal, sabem parar a tempo. Eu avisei-te que é preciso arriscar a vida. Mas cada um é livre de usar os processos que achar mais seguros e mais eficientes. O resultado só depende do teu engenho e da tua habilidade. Desejo-te boa sorte!
E bateu as asas e voou. Foi-se embora sem dizer mais nada.
A conversa terminara sem despedidas, unicamente com aquele "boa sorte". Teria o outro percebido que ele já não estava a acreditar em nada? Mas como? Se ele não tinha dito nada que fizesse supor isso... Até continuou a responder normalmente, apesar de ter achado tudo aquilo um nojo.
Deixou-se estar entretido junto ao ribeiro onde havia umas bagasinhas muito gostosas, que já não comia há muito tempo. E enquanto ia petiscando e saltitando, lembrou-se dos tais ditos poderes de que o outro falava, conseguidos pelo efeito de qualquer coisa que se comeu. Seria isso? Já antes, por várias vezes lhe parecera que ele lhe adivinhava os pensamentos, mas sempre deixou passar como coincidências. O que é certo, é que a conversa pareceu esfriar a partir de um certo ponto, e acabou por terminar daquela forma abrupta. Era estranho. Se de facto era possível o outro seguir os seus pensamentos, claro que percebeu que já não estava a acreditar em nada, e portanto, para quê gastar mais conversa e perder mais tempo? Tinha lógica. Seria isso? Já não sabia no que acreditar, estava confuso, e preocupado também. Agora achava que devia ter falado e dito imediatamente que já não ia naquela história, que não estava a acreditar nele. Fingir que seguia tudo com muita atenção, e fazer até algumas observações, foi uma falsidade que se calhar o outro percebeu. Se isso era verdade, tinha razão para ficar ofendido. Não sabia o que pensar. É verdade que tinha ficado enojado com a novidade daqueles procedimentos, mas em vez de tentar esconder isso, devia ter falado logo, em vez de pensar que o outro o estava a querer enganar. Achou que estava a adivinhar o pensamento do outro, quando afinal, parece que se tinha passado o contrário. Tinha julgado na cabeça do outro um pensamento que afinal era seu. Isto era tipicamente um raciocínio humano... e de repente, sente uma espécie de choque eléctrico que o sacode e o faz acordar num sobressalto. Sem saber onde, nem desde quando ali está, só se lembrava do ribeiro e das pedras, e daquelas bagasinhas gostosas de que ainda tinha o gosto na boca.
link com agradecimento pela foto
terça-feira, março 14, 2006
quinta-feira, março 09, 2006
terça-feira, março 07, 2006
segunda-feira, março 06, 2006
Um singelo hino ao amor
Como eu não queria ficar atrás nessas modernices que andam por aí pelos blogs... neste, a partir de hoje, também já há música. Para ouvir basta clicar no passarinho cantor aqui ao lado.
domingo, março 05, 2006
sexta-feira, março 03, 2006
O Carnaval de que me lembro
... era tão perto, e tão longe daqui
(hoje, não consigo achar muita graça ao Carnaval)
Em todas as casas da rua, uns dias antes, faziam-se milhares de saquinhos de papel colado e cheios com fuba. A fuba era farinha de mandioca que se comprava nas lojas do musseque - devia ser barata - para ser atirada aos foliões que passavam nos carros alegóricos no cortejo de Domingo na Brito Godins. Era uma festa para nós miúdos que, chegado o dia, dos quintais tentávamos acertar com os saquinhos nos mascarados em cima dos carros. No fim, ainda a desviarem-se dos últimos carros, lembro-me de ver umas mulheres descalças e com os filhos amarrados nuns panos atrás das costas, a tentarem recolher para umas latas os restos da fuba espalhada no chão...
(hoje, não consigo achar muita graça ao Carnaval)