quinta-feira, março 16, 2006

"Um perfume de alfazema"



Já se distinguia ao longe a linha do horizonte, e com a primeira claridade da manhã, o velho trilho há muito abandonado, por onde, ziguezagueando entre pedras e mato, vem agora um homem caminhando. Andar, andar sempre, acertar a respiração com o passo e não pensar em mais nada. Com esforço, num passo já cansado, resistindo ao frio que o atormentou toda a noite, o homem só espera agora que nasça o dia para poder parar e descansar. Ouve-se ao longe um passarinho que canta, e logo outro, e mais outro de seguida o acompanha num alvoroço de asas e de cantos, anunciando o novo dia pelos campos. Sente os primeiros raios de sol que lhe aquecem a cara e lhe queimam os olhos. Abranda um pouco o passo e respira mais calmamente, mas o que o faz parar, por fim, é o chilrear dos passarinhos. Há quanto tempo não os ouvia? Não se lembra. Tem menos frio agora, e procura um sítio onde sentar-se e descalçar as botas. Quer descansar as pernas e dormir. As últimas horas de caminho fê-las como um sonâmbulo - três passos inspira, três passos expira, seguindo o trilho que o guiou toda a noite, evitando que andasse às voltas sem sentido. Entretanto afastou-se um pouco do caminho e arranca umas braçadas de erva com que improvisa uma cama, descalça-se e finalmente deita-se. Fez com o saco que trazia ao ombro um travesseiro, puxou o chapéu sobre os olhos, e adormeceu.

Agora voava... Vencida a estranheza inicial, como se não tivesse peso, podia elevar-se do chão e voar. E ali do alto onde voava agora, tudo o que via era novo. Fascinado, é quando procura um caminho, qualquer coisa lá em baixo que lhe diga onde está, que descobre o carreiro e se vê de repente a si próprio naquela madrugada... Uma súbita vertigem e logo de seguida a aflição da queda. Num segundo debate-se sem perceber o que lhe está a acontecer. Estou a cair! Estou a cair! Grita e agita-se, e de repente acorda...

Aflito e a transpirar, afasta o chapéu da cara, mas não consegue abrir logo os olhos por causa da intensa claridade. Quanto tempo terei dormido? Nesse preciso instante, um passarinho acabava de pousar num arbusto ali muito perto dele, e olhava-o curioso. O ramo ainda abanava, e é isso que lhe prende a atenção enquanto vai entreabrindo os olhos, adaptando-os à luz. Ele e o pássaro olham-se com a mesma estranheza e a mesma curiosidade.
Eu estava a voar quando acordei! Lembrou-se. Já tinha tido sonhos estranhos de outras vezes, mas raras vezes se lembrava deles, e nunca, ao acordar, os relacionava com a realidade. Mas agora tinha ali por cima da cabeça aquele passarinho a olhar para ele, e a coincidência de se encontrarem ali naquele instante, ele vindo de um sonho em que voava, e um pássaro, vindo talvez de um voo em que sonhava.
Estaria a delirar? Adormecera exposto ao sol, e agora com certeza delirava. Arrastou-se um pouco para abrigar a cabeça à sombra, fechou os olhos e tentou reconstituir o sonho. Mas do que se lembrava, era que o sonho tinha abruptamente terminado no preciso instante em que tocara a realidade. Como uma bola de sabão que se desfaz quando a tocamos. Dois mundos que não podiam existir em simultâneo, pensou. Seriam os pontos em que se tocam, passagens para outras dimensões? Tentou por algum tempo ainda manter-se naquela fronteira entre o sonho e a vigília mas, sentia a boca seca e na barriga aquele aperto da fome que não lhe dava sossego. Tinha caminhado toda a noite e todo o dia anterior, e só tinha parado para beber água quando atravessou um ribeiro, já muito para trás. Aí, tinha aproveitado para descansar um pouco e encher uma garrafa que trazia no saco. Virou-se à procura da garrafa, e olhou para cima. O pássaro ainda lá estava, no mesmo sítio, agora entretido a coçar as penas com o bico, e assim que o viu mexer-se, ficou de novo atento aos seus movimentos. Ele desrolhou a garrafa e, antes de levá-lá à boca, encheu primeiro a tampinha, à laia de copo, e esticou o braço colocando o pequeno bebedouro ao seu lado, o mais afastado que pôde, a convidar o passarinho a beber também. E bebeu a água que restava na garrafa. O passarinho tinha o olhar fixo naquele minúsculo espelho de água que brilhava lá em baixo, mas não se mexeu no seu poleiro. Seria uma armadilha para o atrair ao pé do homem? Não, os animais não pensam assim, assim pensam os humanos. Virou-se de lado e tapou a cara com o chapéu, deixando por baixo uma nesga por onde podia ver a tampinha à sua frente, à distancia de um braço estendido.

Fruto de uma longuíssima experiência, a desconfiança dos pássaros possibilitou-lhes uma existência tão antiga como a dos dinossauros. E a capacidade de voarem permitiu-lhes até sobreviverem ao Dilúvio. Se pudesse escolher um outro animal para reencarnar, seria um pássaro, pensou. Não iria fazer mal àquele. Fazia apenas uma tentativa de aproximação amigável, uma pequena oferta em troca de uns momentos de companhia. Será que o animal entendia? Se vencesse o medo e descesse até ali ao pé dele para matar a sede, ficaria contente. Prometeu deixar-se ficar completamente imóvel, para não o assustar, e mostrar-lhe que podia confiar num ser humano.

Quando abriu os olhos percebeu que tinha novamente adormecido. Por uns instantes talvez... e reparou com espanto que a água tinha desaparecido. O pássaro devia ter pousado ali enquanto ele dormia, e bebeu-a sem que ele desse por isso. Mas a grande surpresa, é que mesmo ao lado da tampinha da garrafa, estava um pequenino fruto vermelho alaranjado, pouco maior que uma cereja. Ergueu-se e olhou em volta, a ver se havia sinais do pássaro, mas não, nada. Pegou no fruto e examinou-o com cuidado, tinha apenas uma pequeno golpe que deve ter sido feito com o bico, ao traze-lo. Era um fruto muito bonito, com uma pele sarapintada de pequenas grainhas brancas. Dir-se-ia um morango, não fosse ser tão redondinho. Hesitou em mete-lo à boca. Cheirou-o primeiro e depois tocou com a ponta da língua no sítio que tinha sido ferido pelo pássaro, e achou que era doce. Devia ser comestível, portanto. Já não comia nada há bastante tempo, e isto avivou-lhe os sentidos. Seria venenoso? A natureza, que é sábia, pôs nas coisas venenosas sabores normalmente pouco convidativos. E com este raciocínio acabou por vencer a hesitação, e trincou-o. Uma metade primeiro, que saboreou lentamente, enquanto observava a outra metade com minúcia, entre dois dedos, bem em frente do nariz. Tinha umas pequenas grainhas mas era delicioso. Que fruto seria aquele? Meteu o resto na boca e levantou-se, saboreando a novidade e tentando localizar o pássaro. Mas em toda a volta quase não havia árvores, a vegetação era pouco mais que rasteira, unicamente uns pequenos arbustos aqui e além que eram no máximo da altura de um homem. Aquilo só podia ser fruto de um daqueles arbustos ali das redondezas. Resolveu retomar o caminho. Calçou-se, amarrou o casaco à cintura, pegou no saco e retomou o velho trilho, observando os arbustos na esperança de encontrar mais frutos daqueles.
Ainda com o sabor doce na boca, ia andando e pensando no pássaro. Por onde andaria ele agora? Será que os pássaros têm memória? E se o visse, será que o reconheceria? Os pássaros parecem todos iguais, dentro de cada espécie, claro. E aquele o que era? Um pardal, talvez. Também podia ser, deixa ver... e foi enumerando mentalmente todos os tipos de aves de que se lembrava. Pardais, pombos, perdizes, codornizes... Como seria que as aves entre elas se reconheciam? Como é que um pardal sabe que é um pardal? E lembrou-se que os cucos deixam os seus ovos a chocar nos ninhos de outras aves, tinha visto um filme sobre isso. Um filme...é verdade! E nisto parou. Há quanto tempo foi isso? E aonde foi? Surgiam-lhe imagens desconexas que não conseguia organizar e dar sentido. Uma súbita tontura e era a guerra, as mortes e o sangue. O hospital, tudo branco, as batas brancas... e ele amarrado à cama. Respirou fundo. Uma, duas, três vezes, e deu por si ali parado sem saber o que fazia, e o que fazer. Já antes se tinha sentido assim, e disse para si próprio: Nada de pânico, nada de pânico, continua o teu caminho! E lentamente foi retomando a marcha, tentando fixar-se na respiração, sincronizando-a com as passadas. Era mais fácil assim. Andar, andar sempre e respirar.
O gosto que lhe ficara na boca lembrou-o que tinha de se alimentar. Sentia-se fraco, não iria aguentar naquele estado mais uma noite de marcha. Aquele trilho ia dar a algum lado com certeza. Mais adiante, onde o terreno subia ligeiramente para a direita, havia um pequeno arvoredo. Decidiu-se e resolveu meter por entre o mato, naquela direcção. Foi-se aproximando e, observando os arbustos, reparou que num, dissimulado entre os outros, havia de facto uns frutosinhos muito maduros que percebeu logo serem iguais ao que o pássaro lhe tinha levado. O arbusto não era grande, mas estava carregado deles. Arrancou o primeiro que meteu imediatamente na boca, saboreando com gosto. Depois comeu outro, e mais outro ainda, já com alguma sofreguidão. Os mais avermelhados eram os mais maduros, e mais doces e sumarentos, percebeu. E não só matavam a fome como lhe aliviavam também a sede. Às tantas, com a boca já tão atafulhada que lhe escorria suco pelo queixo até ao pescoço, achou que devia parar aquela orgia. Percebeu que em breve se iria fartar. Havia ainda tantos frutos, porquê aquela sofreguidão? Podia encher os bolsos e continuar o caminho com uma reserva para o resto da viagem. E foi isso que fez. Podia meter a mão ao bolso quando quisesse, enquanto caminhava, se lhe apetecesse comer mais. De momento estava cheio, ou melhor, já estava a ficar enjoado.
De regresso ao caminho, mal tinha retomado o ritmo da marcha quando começou a sentir o estômago às voltas, agoniado. Não devia ter comido tanto. Pensou que a qualquer momento podia meter os dedos à boca e vomitar, mas o pior eram as tonturas que começava a sentir, e que não queria acreditar que fossem por causa da fruta. Seriam aqueles frutos venenosos? Ter-se-ia ele envenenado estupidamente a si próprio? Cada vez se sentia mais tonto e com a vista cada vez mais embaciada. Tentou ainda alguns passos, mas já não conseguiu. Caiu de joelhos, e vomitou. Aquela polpa adocicada ali regurgitada à sua frente era um nojo, e ele naquela posição uma vergonha. Parecia-lhe que vomitara quilos de fruta. Cabrão do pássaro, hein! Pensava alto. Tentava levantar-se e via tudo à roda. Fez um esforço para se aguentar em pé, mas em vão. Tropeçou nas próprias pernas e caiu. Deixou-se estar assim por uns momentos, deitado, tentando perceber o que se estava a passar. Seria o efeito do veneno?
E finalmente percebeu que estava bêbado. Não é que fosse novidade para ele, mas sempre associara a bebedeira à bebida e ao álcool, e agora só tinha comido fruta... Coisa estranha aquela! Tentava ter alguma lucidez no raciocínio, mas não era fácil. Vou ficar aqui sossegado, à espera que isto passe. Não é a primeira vez que apanhas uma buzana, pá. Isto passa... e também já vomitaste, o que alivia bastante. Deixa-te estar, que estás bem assim. Falava alto consigo próprio. E o sacana do pássaro, hein? Filho da puta, um gajo ali cheio de amor pelos bichos, se calhar o bichinho tem sede, e tal... e o manhoso fodeu-me! E depois de uma pausa, continuava. Mas olha que até tem graça! O sonso vem de mansinho, apanha-me a dormir, deve ter percebido que um gajo estava a precisar de alimento e pimba. Com a treta de me adoçar a boca, lixou-me.
E assim continuou deitado de barriga para o ar, olhando o céu às voltas, enquanto perorava. Mas olha que o sacana foi subtil. Se fosse um passaroco malandro ou mal agradecido podia-me ter cagado em cima. Ou pior ainda, vir-me bicar um olho, foda-se! Mas este teve graça, o sacana. Será que também há humor nos animais? Se eles brincam... Com a treta de retribuir a gentileza da água, deve ter pensado: Vou dar-lhe uma coisa doce, o gajo vai gostar, vai à procura de mais e eu vou ficar aqui a ver o gajo rebentar. Bem visto... Se calhar até está para aí escondido a ver-me nesta triste figura, o cabrão.
E com a bebedeira, delirava. Virou-se de lado e tentou descansar, agora já com alguma simpatia pelo passarinho, e até com admiração pelo elaborado raciocínio que descobria no animal. Mas que raio de merda é que eu terei comido? E foi a última coisa que conseguiu dizer para si próprio, uns momentos antes de adormecer novamente.

Agora voava no meio de um enorme bando de pardais do campo, e reparava que havia uns quantos que, à parte, se destacavam formando verdadeiras esquadrilhas que faziam as acrobacias mais incríveis que se podiam imaginar. E eram vários os grupos de esquadrilhas que se desafiavam, fazendo loopings e descidas vertiginosas para ver quem eram os melhores. Era um mundo fascinante de desafio permanente e de liberdade.
Ele não se destacava no bando. Era um grupo muito grande que voava sobre as cearas, onde faziam grandes razias. Os outros, os kamikazes, como ele lhes chamava, voavam à parte, mais alto e em bandos mais pequenos. Faziam voos muito velozes, com acrobacias fantásticas em volta dos campos, distraindo eventuais predadores. E em caso de perigo, avisavam rapidamente os companheiros que comiam calmamente lá em baixo. Eram jovens machos, normalmente. As fêmeas e os mais velhos podiam assim comer tranquilamente os seus grãosinhos de trigo ou do que fosse, e carregarem as ervas para os ninhos.
Mas os kamikazes fascinavam-no. Eram velozes e destemidos e, à parte o exercício do voo, em que eram exímios, não ligavam a mais nada. A não ser acasalar. Depois das suas enumeras façanhas, não lhes era difícil cortejar e seduzir as fêmeas.
Nunca tinha feito parte de nenhuma daquelas esquadrilhas. Por várias vezes tentou isoladamente efectuar loopings e voltas rápidas, e algumas outras manobras que já tinha observado e que lhe pareciam impossíveis de realizar. Mas corriam-se imensos riscos em voos isolados, e o maior de todos era o ficar-se muito vulnerável a qualquer predador. Ele sabia isso. A grande protecção era a presença do bando. Todos protegem todos. O bando era praticamente invulnerável. É certo que por vezes desapareciam alguns, mas o bando permanecia.
A ele fascinavam-no as proezas do voo, e pertencer a um daqueles pequenos grupos era o seu maior sonho. Ser capaz de fazer o mesmo e ser respeitado pela sua audácia. Não desistia da ideia de o conseguir um dia.
Uma manhã em que ainda estavam quase todos às voltas nos ninhos, resolveu sair sozinho e seguiu à distância um grupo de Kamikazes que costumava treinar muito cedo, aproveitando o fresco da manhã. Poisou num ramo bem alto e ficou a observar de longe. A formação da esquadrilha era perfeita. À frente vai um líder que dirige os movimentos de todos os outros e tudo o que ele fizer os outros repetem instantaneamente, sem nenhum lapso de tempo, nem uma fracção de segundo sequer. Volta à direita, agora à esquerda e para cima, muda de velocidade, desce, acelera, tudo é feito em bloco e ao mesmo tempo, como se de um só corpo se tratasse. Reparou que a posição de líder ia alternando entre todos, com uma sequência que lhe escapava. Qualquer um podia tomar a dianteira e, a partir daí, tudo dependia da capacidade inventiva do líder e da sua experiência para dirigir o grupo até aos limites da aerodinâmica. Essa alternância tinha a vantagem de repartir o maior esforço por todos. Os que vão nas linhas de trás voam com muito menos esforço porque não têm que enfrentar a mesma resistência do ar. Por vezes, com muito treino, é possível voar quase sem bater as asas, aproveitando o efeito de sucção dos da frente. Era lindo de ver!
Tão absorvido estava a ver aqueles exercícios que não reparou num outro mais velho que também observava num ramo ali perto.
- É bonito de ver não é? Só depois do outro falar é que reparou que ele ali estava. Olhou-o e concordou com a cabeça.
- Mas isto pode acabar um dia. Pode ser que um dia não seja mais possível voar assim.
- Porque é que diz isso?
- Achas que só a comer grãosinhos de trigo se consegue fazer aquilo que eles fazem?
- Mas é uma questão de alimentação? Será assim um esforço tão grande?
- Não é de esforço físico que eu estou a falar, a maioria das aves só come grãos e não é por isso que deixa de voar. É de um outro estado de consciência que eu estou a falar, de outra percepção da realidade que lhes permite aquela comunicação entre eles e aquela eficiência.
- Não estou a perceber...
- Tu não és daqui pois não? E com um ligeiro bater de asas veio pousar no mesmo ramo, quase ao seu lado.
- ... só estou fascinado com aquelas acrobacias, era uma coisa que gostava de ser capaz de fazer. Porque voar sozinho e ir para onde eu quero não tem novidade nenhuma para mim.
Depois de uns segundos calado, o mais velho continuou.
- Tem de se passar por várias provas, antes de se ser capaz de fazer aquilo.
- E que provas são essas? Perguntou curioso.
- Para começar, tens de provar que és capaz de arriscar a tua própria vida sozinho em benefício do grupo, e com a certeza de que não terás ajuda de ninguém. Só poderás contar contigo próprio, com a tua coragem e a tua inteligência.
- E se eu aceitar, o que é que tenho que fazer?
- Aos principiantes, a primeira tarefa que lhes é confiada é procurarem alimento para aqueles que estás ali a ver. Sem essa alimentação eles não têm as capacidades que lhes permitem aquelas proezas.
- E que alimento é esse? É muito difícil de encontrar?
- Depende do engenho de cada um. Para uns será mais fácil, para outros mais difícil. Alguns pagam com a própria vida. E deu um pequeno impulso, fazendo balouçar o ramo, bateu as asas e voou. O outro não podia perder aquela oportunidade, precisava de saber mais. O seu sonho parecia envolto num segredo e dificilmente voltaria a estar tão perto, caso o deixasse ir-se embora. Resolveu ir atrás dele.
Reparou que o outro, provavelmente por ser mais velho e para não fazer grande esforço, aproveitava na perfeição as correntes de ar e quase não tinha que bater as asas para voar. A mais pequena brisa ascendente era por ele percebida antecipadamente. Não voava muito depressa, mas o seu voo sereno parecia um bailado. Viu que estava a ser seguido mas não alterou em nada o seu caminho, deixou que o jovem se fosse aproximando e reparou que, aos poucos, ele lhe ia imitando os movimentos. Ao fim de algum tempo, depois de já estarem a voar praticamente lado a lado, sempre a subir, aproveitando o vento quente, resolve quebrar o silêncio.
- Não há perigo em vir aqui para tão alto?
- Perigo há sempre, sabes que viver é perigoso. Queria mostrar-te a paisagem daqui de cima. E subiram mais um pouco. A vista dali era soberba! A Terra agora parecia um disco redondo lá em baixo, e em volta, todo o horizonte azul.
- Todos esses campos que vês, sempre nos deram de comer com fartura, nunca houve falta de comida, podíamos ir rodando constantemente, variando a alimentação, e ninguém se importava com isso. Depois, parece que alguém descobriu a maneira de fazer fogo, mais tarde os pesticidas e os venenos, e desde aí tudo tem vindo a mudar. Uma verdadeira praga! Às armadilhas e aos espantalhos até nos habituámos, foram muitos anos de convivência, já quase que achávamos graça. E ultimamente ouve-se falar muito de cereais trangénicos. Será que eles conhecem todas as consequências? As fêmeas que se alimentarem com essas plantas, podem até ficar gordinhas, mas em breve deixarão de poder ter filhos. Dentro de algumas gerações, se quiseres encontrar alguém como tu, terás de ir a um jardim zoológico, ou a alguma loja de pássaros para ver os teus irmãos fechados, muitas vezes com as asas cortadas, enfiados naquelas gaiolas horríveis que eles acham muito bonitas e decorativas, a comer alpista de manhã à noite e a gritar por socorro. Eles acham que estão a cantar, não sabem que estão a pedir ajuda! O que os vale é que muitos morrem rapidamente. O futuro pode vir a ser sombrio...
- E o tal alimento especial de que há bocado falava?
- Já lá vamos... Com as coisas que lá embaixo teimam em fazer, a maioria dos frutos silvestres, que sempre existiram, estão aos poucos a desaparecer. Arrancam-se plantas sem sequer saber primeiro que plantas são, e para que servem. Arrasam tudo! Chegam a cobrir de cimento sítios onde antes havia plantas que lhes podiam ter aliviado o reumatismo ou evitado o cancro. A fruta que comem é cultivada em campos a perder de vista, como fábricas, em série, tudo igual, tudo com o mesmo sabor. Até se gabam que não têm bicho, e que não estão bicadas por nós. Pois pudera! E dos frutos silvestres que estão a desaparecer, há alguns que devido às suas propriedades raras correm riscos maiores, por ignorância ou por cobiça, já quase não se encontram nos seus lugares de origem. Vês aquelas pedras ali, junto àqueles montes lá ao fundo? Ali ainda há medronhos. O sítio é bastante difícil de encontrar para quem vai por terra, e é isso que tem ajudado à sua protecção. Só lá vai gente muito raramente, passam-se anos sem aparecer ninguém por ali.
- Então e isso é bom? perguntou o outro, cada vez mais interessado.
- Depende...
- Depende... Depende de quê? Não estou a perceber.
- Depende se esses raros caminhantes encontram medronhos ou não, e da maneira depois como os comem.
Tinham começado a descer. Havia o perigo das águias, e desciam o mais silenciosamente possível, evitando grandes movimentos que pudessem chamar a atenção sobre eles, em direcção ao tal sítio das pedras. A descida foi rápida. Depois de ter feito sinal para que o outro fosse olhando para trás também, porque as águias são muito manhosas e muitas vezes atacam de surpresa vindas de cima, o mais velho seguia à frente cortando o ar como uma flecha. Era admirável a forma como colocava as asas e a atitude do corpo para reduzir ao mínimo o atrito. Acabaram por pousar suavemente no cimo de um pequeno arbusto, depois de uma curta volta de reconhecimento. Havia no ar um perfume doce que ele não percebeu imediatamente de onde vinha, nem o que era. Ainda estava a refazer-se da rápida descida atrás do mestre - era assim que ele começava a ver o mais velho - e tentava identificar aquele aroma desconhecido que o envolvia.
- São medronhos. Disse o outro, enquanto observava a paisagem em volta.
Só então reparou que por baixo deles, dissimulados pela folhagem, havia imensos frutos que devido ao sítio em que tinham pousado, não eram visíveis imediatamente. Deu um pequeno salto para um outro ramo mais abaixo, e aí sim, ficou mesmo em frente a um dos frutos que quase podia tocar com o bico. Sentiu-se como que hipnotizado, pela cor e pelo aroma que libertava. Àquela distancia quase entontecia, e era enorme!
- Posso provar? Perguntou guloso.
- Não te aconselho. Esta fruta tem propriedades mágicas, mas não pode ser comida assim como tu queres, é altamente tóxica. Quem não sabe, e se deixa seduzir e levar pelos sentidos, não vai esperar muito tempo para se arrepender. Consumido assim, pode matar. E depois de uma pausa, continuou:
- É raro passar gente por aqui, é preciso ter paciência... Bem, agora que já ficaste a saber o que é, vamos embora que estamos longe e já se faz tarde. E bateu as asas para iniciar o regresso.
Ele ainda hesitou, enfeitiçado que estava pela descoberta e pela terrível tentação, mas acabou por regressar também atrás do outro.
Voava com a estranha sensação que voltaria ali um dia. Seguia o mestre, batendo as asas em silêncio, mas havia uma pergunta que lhe atravessava o pensamento. Se os frutos eram tóxicos, e se matavan quem os comesse, para que serviriam então? Porque seriam assim tão fascinantes se não poderiam ser tocados? Resolveu esperar. Já tinha percebido que o outro gostava daqueles silêncios e não quis mostrar-se demasiado curioso. Quando achasse que era oportuno dizer alguma coisa, di-la-ia com certeza. Entretanto o mestre, parecendo que lhe lia os pensamentos, fez uma viragem em direcção a um pequeno ribeiro que passava ali perto.
- Vamos descansar um pouco ali, e refrescar-nos.
Pousaram tranquilamente, juntos, sobre uma pedra perto da água, mataram a sede e sacudiram as penas.
- Ficaste curioso com os medronhos, não foi? Sabes que alguns frutos e plantas da natureza, têm poderes estranhos que é preciso perceber e saber aproveitar, ou rejeitar. Mas todos acabam sempre por ter alguma razão de ser. Uns são muito bons, e outros podem ser muito maus. Se seguir-mos às cegas os nossos apetites, sem pensar e sem aproveitar o conhecimento que outros antes de nós adquiriram, podemos dar-nos mal. No caso dos medronhos, há animais que os podem comer e não lhes faz mal, se não abusarem. Têm os estômagos diferentes dos nossos e digerem-nos de forma diferente. Mas se os comerem em grande quantidade, acabam por rejeitá-los. Acontece muito a quem não sabe, acabam por vomitar aquilo que não foi absorvido. E depois de uma pequena pausa, acrescentou:
- E aí entramos nós...
O outro, que seguia muito atento a explicação, não percebeu.
- Entramos nós, como?
- Entramos nós. Assim já podemos comer os medronhos. Falava tranquilamente, como se da coisa mais natural do mundo se tratasse. Os frutos rejeitados, sofreram entretanto naquele estômago uma transformação que lhes eliminou as toxinas que nos fazem mal. O que permite que assim já os possamos comer sem perigo. Estou a ser claro?
Ele estava sem palavras, nem conseguia olhá-lo de frente. Tentava controlar a sensação de nojo que lhe tinha surgido subitamente. Devia estar a brincar! Comer a fruta que tinha sido acabada de vomitar? Não queria acreditar!
- Sim... claro! Foi a única coisa que conseguiu dizer, continuando a olhar para o outro lado, enojado. E que tal são os medronhos depois de serem assim... rejeitados? Ainda conseguiu perguntar, disfarçando o ar de nojo e tentando fazer crer que achava tudo aquilo normal.
- É um verdadeiro manjar dos príncipes! É altamente energético, e desperta capacidades extra-sensoriais fora do comum. São essas qualidades que tornam alguns de nós capazes de executar aquelas proezas que tens visto. Claro que perdem parte do açúcar, mas continuam a ser muito saborosos.
Ele não queria acreditar no que ouvia! O mestre afinal estava a revelar-se o grande mestre do embuste. Devia ter logo percebido quando lhe perguntou se não era de cá... Deve ter começado logo aí a preparar a história. E esteve quase para se virar para ele e perguntar: Olhe lá, ó mestre. Os tais ditos sobredotados não serão gambuzinos disfarçados de pardal? Mas resolveu que não, iria ouvir o resto da história até ao fim. Aquilo só podia ser uma grande partida.
- Pelo que estou a perceber, para se ser iniciado, a primeira tarefa será então ir procurar medronhos acabados de ser vomitados. É isso?
O mestre abanou a cabeça, afirmativo.
- E como deves saber, nestas regiões já não há macacos, que eram uns animais muito pacíficos e grandes apreciadores de medronhos. Eram muito nossos amigos. Mas há muito tempo que foram para outras paragens, só cá ficaram uns outros muito menos espertos e que entretanto mudaram de nome. Agora chamam-se humanos, mas não mudaram muito, à parte o andarem todos tapados com panos, que nem se consegue distinguir os machos das fêmeas. E são muito manhosos. Também são grandes apreciadores de medronhos, que muitas vezes apanham mas não comem, dando-lhes antes um tratamento que os transforma numa bebida que eles apreciam muito. Chegam mesmo a ficar de cabeça perdida...
- Segundo ouvi dizer, arriscou o jovem pardal, esses tais humanos, quando apanham algum de nós, ou matam e comem, ou enfiam numa gaiola. Porque será?
Tinha resolvido ver até onde é que ia a história.
- Não sei explicar. Disse o outro muito sério. Talvez porque, para além de comerem outros animais, o sofrimento que lhes infligem os alimente também... ou lhes sirva para qualquer outra coisa, não sei. Não tenho explicação. E ficaram por alguns momentos pensativos.
Mas o assunto não estava esgotado.
- Eles até constróem umas gaiolas onde se prendem também uns aos outros! São um perigo, esses humanos!
- Não deve ser então tarefa fácil andar à procura por esses campos de alguém que tenha comido medronhos a mais, e depois ficar ali à espera que os vomite. Com o amor que eles nos têm, se nos aproximamos muito estamos fritos.
- Literalmente. É mesmo um dos petiscos que eles mais apreciam, passarinhos fritos.
O outro teve um arrepio.
- Qual é então a melhor maneira de se conseguirem esses tais... "medronhos tratados"? Não haverá outra forma? Perguntou com o ar mais sério que conseguiu.
- Há mais seres que gostam deste fruto, menos falsos que os humanos e dos quais nos podemos aproximar facilmente. Mas esses, de um modo geral são mais sensatos e, quando percebem que algo lhes vai fazer mal, sabem parar a tempo. Eu avisei-te que é preciso arriscar a vida. Mas cada um é livre de usar os processos que achar mais seguros e mais eficientes. O resultado só depende do teu engenho e da tua habilidade. Desejo-te boa sorte!
E bateu as asas e voou. Foi-se embora sem dizer mais nada.
A conversa terminara sem despedidas, unicamente com aquele "boa sorte". Teria o outro percebido que ele já não estava a acreditar em nada? Mas como? Se ele não tinha dito nada que fizesse supor isso... Até continuou a responder normalmente, apesar de ter achado tudo aquilo um nojo.
Deixou-se estar entretido junto ao ribeiro onde havia umas bagasinhas muito gostosas, que já não comia há muito tempo. E enquanto ia petiscando e saltitando, lembrou-se dos tais ditos poderes de que o outro falava, conseguidos pelo efeito de qualquer coisa que se comeu. Seria isso? Já antes, por várias vezes lhe parecera que ele lhe adivinhava os pensamentos, mas sempre deixou passar como coincidências. O que é certo, é que a conversa pareceu esfriar a partir de um certo ponto, e acabou por terminar daquela forma abrupta. Era estranho. Se de facto era possível o outro seguir os seus pensamentos, claro que percebeu que já não estava a acreditar em nada, e portanto, para quê gastar mais conversa e perder mais tempo? Tinha lógica. Seria isso? Já não sabia no que acreditar, estava confuso, e preocupado também. Agora achava que devia ter falado e dito imediatamente que já não ia naquela história, que não estava a acreditar nele. Fingir que seguia tudo com muita atenção, e fazer até algumas observações, foi uma falsidade que se calhar o outro percebeu. Se isso era verdade, tinha razão para ficar ofendido. Não sabia o que pensar. É verdade que tinha ficado enojado com a novidade daqueles procedimentos, mas em vez de tentar esconder isso, devia ter falado logo, em vez de pensar que o outro o estava a querer enganar. Achou que estava a adivinhar o pensamento do outro, quando afinal, parece que se tinha passado o contrário. Tinha julgado na cabeça do outro um pensamento que afinal era seu. Isto era tipicamente um raciocínio humano... e de repente, sente uma espécie de choque eléctrico que o sacode e o faz acordar num sobressalto. Sem saber onde, nem desde quando ali está, só se lembrava do ribeiro e das pedras, e daquelas bagasinhas gostosas de que ainda tinha o gosto na boca.



link com agradecimento pela foto

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostava de comentar sem usar adjectivos, mas não consigo. Vou usar apenas dois para o autor: delicadeza e sensibilidade

11:02 da manhã  
Blogger TR said...

Incríveis os sonhos, incrível este seu sonho com que me deparei no seu blogue. Uns medronhos pra mim se faz o favor!!

9:17 da tarde  

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