sábado, fevereiro 22, 2014

"Estamos ou não melhor?" - A pergunta que queima

A formulação de Passos no discurso de abertura foi um passo ousado do líder do PSD. PS, críticos internos, presidenciais - temas fortes de um regresso ao Coliseu 
Martim Silva
O casamento Passos/Portas Se este congresso se tivesse realizado há uns meses, a relação entre o PSD e o CDS e a relação entre Passos Coelho e Paulo Portas seria seguramente um dos temas de topo. Hoje, fevereiro de 2014, deixou de ser uma preocupação aguda dentro da maioria. Será que vai ser assim até 2015 ou temas como a baixa do IRS (de que Passos não é entusiasta) ou a saída da troika vão voltar a fazer azedar as relações?
Presidenciais No primeiro dia de Congresso, pouco ou nada se falou de presidenciais. Mas o tema deve subir ao palco na intervenção de alguns congressistas neste sábado.
Soares aplaudido Passos ao evocar a história do partido e o seu papel na construção da democracia portuguesa, teve uma palavra e um gesto simpático para com Mário Soares, evocando o seu nome. E ouviram-se aplausos.
Frases do discurso de Passos: "O PSD não é hoje menos social-democrata do que em 1974"; "Quando se começa a levar pancada, às vezes dói mais quando já estamos moídos"; "O Governo está a ajudar a salvar Portugal"; "Julgo que ninguém tem dúvidas que estamos hoje melhor que há dois anos"; "A oposição está zangada com o que se passa no país"; "Nunca ninguém me viu a silenciar seja quem for"; "Portugueses não tolerariam que voltassemos para trás"; "A receita socialista não é sustentável";
A relação com o PS Levanta-me alguma perplexida a intervenção de Passos num ponto: todo o seu discurso troika e pós troika assenta na necessidade de acordos, consenso. O que passa pela necessidade de, de alguma forma, dar a mão ao PS. Ora, se assim é, e se isso é assim tão importante, para quê o "malhar" de forma insistente nos socialistas como Passos fez na intervenção de sexta-feira? É que essa não é seguramente a estrada mais curta para serem conseguidos acordos.
Estamos ou não melhor? (parte dois) Aliás, a ideia do "estamos ou não melhor", levanta outra observação sobre Passos. E sobre a forma cerebral, fria, quase de pedra como ele parece falar e agir. Durante três anos foi dessa forma fria que aplicou a austeridade (não estou a dizer que o fez mal, apenas que o fez de forma dura e fria). Agora, ao anunciar a retoma e ao dizer que estamos melhor que há dois anos, volta a parecer totalmente frio e cerebral e racional. Porque dificilmente se entende que diga tal coisa quando, manifestamente, o país, nós todos, ainda estamos bem dentro do poço. Podemos estar a caminhar na direcção da saída (e eu até acredito que estamos), mas que ainda estamos lá bem no fundo, estamos. Pego na frase que Balsemão dirigiu aos congressistas, no vídeo na abertura do congresso: "A política também é coração". Pode ser, mas seguramente que não para Passos Coelho.
Estamos ou não melhor? Ideia central na intervenção de Passos Coelho, e provavelmente uma das ideias fortes que vai marcar todo o Congresso, foi quando perguntou "estamos melhor ou pior que há dois anos?" aos congressistas, lançando em seguida um monte de dados, estatísticas e números para, finalmente, concluir que "julgo que ninguém tem dúvidas de que estamos melhor". Passos deu aqui um passo claramente maior que a perna. Umas coisa é dizer que estamos no caminho certo. Que já batemos no fundo do poço. Que o crescimento da economia é sustentável. Mas verdadeiramente o que "queima" na pergunta que Passos faz é que a mesma pergunta, se feita mentalmente por cada um dos portugueses, pode levar a uma resposta que não é propriamente a mesma que o líder do PSD deu no Congresso.
Entre o esfrangalhado e o eufórico. Se o Congresso do PSD se tivesse realizado há apenas seis meses, o que teriamos assistido era a um partido (e a um Governo) totalmente esfrangalhado, sem ânimo, nem norte. É verdade que o golpe de asa de Passos a resolver a crise do verão, e ao conseguir manter a coligação viva, foi provavelmente o momento decisivo da legislatura. E que agora o estado de alma laranja é outro. Longe de eufórico mas pelo menos já não tão deprimido - a isso ajudam e muito os números da economia dos últimos meses, que afastaram a ideia da espiral recessiva que durante tanto tempo pairou como uma nuvem negra sobre o país. Mas daí a que Passos se permita  dizer que estamos hoje melhor que há dois anos, vai um oceano de diferenças. Até se percebe que diga que estamos no caminho certo, mas não era preciso exagerar...
O discurso longooooo de Passos. Quase uma hora a falar aos congressistas na abertura do encontro. Uma intervenção para "prestar contas", como o próprio afirmou. Um tom muito muito professoral, sempre a debitar números e estatísticas. Um discurso longe, muito longe, de empolgante. Aliás, não me lembro de um discurso de abertura de um congresso partidário em que o líder tenha sido tão pouco aplaudido (mas o problema pode mesmo ser a minha memória). Só quando Passos se dispôs a "malhar" no PS é que verdadeiramente a sala começou a aquecer. Passos falou, como tantas vezes nestes três anos, de improviso. Não só não usa teleponto como Sócrates, como nem sequer traz discurso escrito.
O bando louco de neoliberais (parte dois). Percebe-se que, por puro instinto de sobrevivência e depois de três anos de governação e a poucos meses de eleições, o PSD insista tanto nesta tecla de "vejam como nós não somos nem nunca fomos liberais". Mas o tema não deixa de me causar alguma espécie. Há quatro anos quando chegou à liderança do PSD Passos Coelho assumiu um programa marcadamente liberal (tirar o Estado da Economia, Constituição, etc, etc). Normal num partido grande e de centro-direita, onde cabem de liberais a conservadores a sociais-democratas a maçons a católicos. No fundo, onde cabe quase tudo. Ora, o que me causa espécie não é que Passos tenha assumido em 2010 um programa liberal. Nem, no limite, que quatro anos depois o pragmatismo eleitoral e partidário levado ao extremo leve a uma inversão de agulhas. Verdadeiramente o que me causa espécie é que agora se passe uma esponja e se queira esconder que o programa que levou estes senhores ao poder era claramente um programa liberal e liberalizante para o país.
O bando louco de neoliberais. Todo o Congresso está montado em torno do mote "somos muito mas muito sociais-democratas". Das frases de Sá Carneiro que envolvem a sala do Congresso, ao vídeo mostrado na abertura em que se puxou até mais não pelo papel do PSD (ou melhor, da chamada Ala Liberal, já que o PSD nem sequer existia na altura) no combate ao Estado novo e pela democratização do regime. Até músicas de abril se ouviram. Passos disse mesmo na sua intervenção de abertura que o partido é hoje tão social-democrata como era em 74. O tema, manifestamente, é hoje quase uma obsessão desta liderança, que quer mostrar à exaustão que quem manda no PSD não é um bando de neoliberais furiosos. Que amam o Estado Social tanto ou mais que o mais empedernido socialista. Percebe-se que o façam: depois de três anos de troika, o rótulo de liberal passou infelizmente em Portugal a quase equivaler a insulto.
Os críticos. Logo na primeira intervenção do congresso, de Miguel Pinto Luz, líder da distrital de Lisboa do partido, deu o mote do que vai ser seguramente uma das notas fortes deste congresso: "O PSD não está nas televisões, está aqui". O ataque aos críticos internos, a maior parte deles ausente vai servir como toque a rebate, como tentativa de unir as hostes. Arranja-se um inimigo interno, o que ainda por cima ajuda a animar um congresso que não tem grandes pontos de interesse. Vai ser dos temas que mais aplausos vai garantir entre os congressistas, seguramente.
Presenças e ausências. Já se percebeu que dos temas mais abordados neste Congresso vai ser a ausência de algumas das principais figuras laranja do Coliseu, sendo que são essas precisamente algumas das figuras mais críticas da atual linha de atuação do partido. Ferreira Leite, Marques Mendes, Marcelo, etc. Na abertura ainda havia a dúvida sobre se Menezes regressava ou não ao Coliseu (depois da celebremente triste intervenção dos sulistas, elitistas e liberais de há 19 anos).
As Europeias. Tema preferido, ou pelo menos um dos temas preferidos na abertura do Congresso eram as eleições Europeias do próximo dia 25 de maio. Os diretos televisivos durante a tarde de sexta-feira à porta e dentro do Coliseu foram muito centrados na questão de saber se o partido iria ou não apresentar o seu cabeça de lista (que sabe-se vai ser Paulo Rangel) neste Congresso. Uns achavam que sim, devia ser neste fim de semana que o nome era anunciado, outros achavam que não. O deputado Duarte Pacheco disse mesmo que o nome iria ser divulgado durante o Congresso. Mas seria o próprio Paulo Rangel a dizer à entrada que a questão não iria ser tratada (ou seja, o anúncio formal) nestes três dias.
A presença de Portas. Pouco antes de começar o XXXV Congresso do PSD, no Coliseu, ficou a saber-se que Paulo Portas iria repetir a presença na sessão de encerramento do conclave laranja, repetindo o que fizera há dois anos, no Congresso do Pavilhão Atlântico. Depois de Passos ter sido há pouco tempo aplaudido no Congresso do CDS, não deixa de ser curioso verificar qual a reacção que Portas causará ao "povo" laranja. Até porque, se é verdade que as relações entre os dois líderes e os dois partidos está hoje "normalizada", não o é menos que foi por causa de Portas que no último verão a maioria esteve a centímetros de se estatelar.
Regresso ao local onde foste feliz. O XXXV Congresso do PSD realiza-se este fim de semana no Coliseu de Lisboa. É a quinta vez que os sociais-democratas escolhem esta sala tradicional para a realização dos seus conclaves. Bem se pode dizer que o Coliseu é "A SALA" dos congressos do PSD. Aqui se passaram momentos épicos, como o célebre congresso de fevereiro de 1995, que marcou a sucessão de Cavaco Silva depois de dez anos à frente do partido (o congresso dos "sulistas, elitistas e liberais").

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terça-feira, fevereiro 11, 2014

Nunca pensei em ser polícia

... Agora, o governo quer fazer de mim um polícia (ainda por cima à paisana) e também um denunciante.
O processo não é complicado. Quem pedir sempre a factura a quem lhe vende um café, um bife ou um casaco, chega ao fim do ano com um molho de bilhetes de lotaria para o sorteio de um carro “topo de gama”, que o governo oferece ao “bom cidadão”. Isto permite ao ministério das Finanças comparar o volume de negócios declarado de qualquer restaurante ou de qualquer loja com a documentação que lhe entregou a classe média à procura de um Audi ou de um Mercedes, que a faça brilhar na vizinhança e espicace a sempre viva inveja da família e amigos. Para animar as coisas, que, segundo consta, não andam bem, o Estado obriga toda a gente a pedir factura.
Como se compreenderá, o Estado transforma assim com habilidade e subtileza os portugueses numa corporação de espionagem encarregada de se espiar a si mesma, sem gastar mais do que um carro apreendido a um criminoso ou contrabandista. Vivendo perto da falência, o comércio e a restauração tendem a subtrair uma factura ou outra à tosquia fiscal a que estão submetidos. Esta prática irrita os peritos que aconselharam ao sr. primeiro-ministro este método democrático. A Espanha acha o estratagema “pitoresco”. Por mim, que não sou a Espanha, acho a ideia tenebrosa: vexatória, indigna, irresponsável, excessivamente parecida com episódios conhecidos da Ditadura e dos regimes que ela imitava e venerava. E, no fim do ano, gostava de ver a cara do meu compatriota que ganhou esse glorioso concurso.
Estou daqui a imaginar a cena. O indivíduo gordo e triunfante que atrapalhou a vida a centenas de pessoas, que tinham cometido o erro de confiar nele. O sr. Passos Coelho, seguido da sua trupe e da sua inconsciência. O automóvel cintilando ao longe. O premiado começará por apertar a mão a S. Exa. com uma grande vénia. E, a seguir, S. Exa. retribuirá com um pequeno discurso sobre as vantagens da coesão social, do enorme esforço que se espera do conjunto da Pátria e dos milhões que a operação angariou para os pobrezinhos, que ele particularmente estima. Um secretário entregará a chave do carro ao polícia e denunciante do ano e essa virtuosa personagem tornará a apertar com respeito a mão do sr. Passos. A sociedade portuguesa avançou um novo passo para a abjecção.
(Vasco Pulido Valente)

O ROUBO DO PRESENTE


(José Gil)

Há pelo menos uma década e meia está a ser planeada e experimentada quer a nível do nosso país, quer na Europa e no mundo uma nova ditadura- não tem armas, não tem aparência de assalto, não tem bombas, mas tem terror e opressão e domesticação social e se deixarmos andar, é também um golpe de estado e terá um só partido e um só governo- ditadura psicológica.
Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspectivas de vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro. O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu. O poder destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho. O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stress, depressões, patologias border-/ine enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens). O presente não é uma dimensão abstracta do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direcções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público. Actualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais. O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convivio. A solidariedade efectiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil. Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser espectral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si. Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português. Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria­-nos do nosso poder de acção. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país.