segunda-feira, junho 02, 2014

Carta a um irmão político


Ainda me lembro da noite em que ouvi pela primeira vez a palavra sectário. Devia ter aí uns catorze ou quinze anos e não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer. Mas pelo ar com que empregavas a expressão, não devia ser coisa boa. Aliás, inserida na frase "os seus amigos sectários...", não podia mesmo ser coisa boa. E pela cara com que o nosso pai a recebia, a coisa não era mesmo boa. Como militante do PCP que o pai era há décadas, ele já devia ter ouvido esse ataque umas mil vezes. Como militante socialista que tu eras há uns sete ou oito anos, já a terias proferido algumas vezes.
Não sei se era coisa da faculdade de Direito onde andavas, com a JS e a JCP a disputar a Associação de Estudantes como se fosse a coisa mais importante do mundo, se eram assuntos mais vastos da esquerda, daqueles que ainda hoje ocupam a cabeça de tanta gente, sem progresso ou resultado aparente. Sei apenas que olhava para vocês com admiração pelo empenho com que discutiam, mas sempre com a impressão de que gostava muito mais de assistir do que participar. Às vezes, o meu tio João juntava-se às discussões, e como militante da primeira hora do PSD, fazia com que tudo aquilo se tornasse num diálogo ainda mais interessante e ainda mais impossível. Cresci a ver e a ouvir isso e não tenho dúvidas de que vocês os três, cada um com a sua dose, são responsáveis parciais pelo que acabou por ser o meu trabalho. Foi um treino forçado, mas intensivo.
Passaram trinta anos. Tu nunca largaste a política nem o PS. O meu tio João morreu no ano passado com as quotas e o fervor pelo PSD em dia. E o pai, claro, morreu sem nunca deixar o PCP, apesar de todas as dúvidas a que fomos assistindo, de ter votado como votou no Congresso do Porto - acho que ao lado do Miguel Portas - e de tudo o que se passou nos anos seguintes, com alguns dos melhores amigos dele a saírem do partido. À maneira dele, lidou bem com isso. Manteve os amigos e nunca confundiu as coisas. Lembro-me do desgosto que ele teve quando o Lima de Freitas apoiou o Freitas do Amaral em 1986. Mas lembro-me ainda melhor de como, ano após ano, eles os dois mais o David Mourão Ferreira, conversavam noite fora na Praia do Carvoeiro, esquecendo as divergências políticas e lembrando tudo o que os unia e divertia.
Podia seguir página abaixo, com exemplos destes. Mas lembro apenas mais um, quando o pai ficava tardes à conversa com a Helena Sacadura Cabral, que encontrava quando ia almoçar a um pequeno restaurante nas Janelas Verdes. E só lembro isso porque, além das óbvias divergências políticas deles e da ainda mais óbvia amizade, a Helena tinha em casa um problema bicudo, aquele que todos os portugueses conhecem, o do Paulo e do Miguel Portas. E só lembro isto, porque na terça-feira à noite, pouco tempo depois de termos falado pela primeira vez ao telefone - já tu eras candidato e já eu tinha posto o meu lugar no Expresso à disposição da administração e da redação -, a Constança Cunha e Sá ligou-me a a dizer "ouve lá, vocês só têm que fazer como o Paulo e o Miguel".
A Constança não podia ter sido nem mais genuína nem mais simpática. Mas não sei se a coisa é assim tão simples, muito menos se é mais mais fácil ou difícil. Eles foram jornalistas mas foram sempre políticos. Tu nunca foste jornalista e eu nunca fui político. Andámos e andamos em barricadas diferentes. E é assim que tem que ser. Temos a vantagem de saber que nunca teremos de fazer um frente a frente, mas temos a desvantagem de saber que o Expresso te vai cair em cima de quando em vez e que tu vais tentar cair em cima do Expresso. Não sei se vai haver Congresso e não faço a mínima ideia se o vais ganhar. Mas sei que agora é diferente.
O Expresso já teve um desafio maior pela frente, quando Francisco Balsemão foi para o governo e depois para primeiro-ministro. O jornal passou com distinção na prova. Foi impiedoso, às vezes demais, e fê-lo com estilo e com estrondo. Não gosto de falar em nome da redação onde trabalho, mas conhecendo os meus colegas, sei que não lhes passa pela cabeça fazer alguma coisa diferente. Presumo que estejas preparado para isso. Eu estou. Ou melhor, vou estando.
Outro dia, na homenagem que fizeram ao pai na Casa de Goa, o Vasco Vieira de Almeida lembrou, como só ele é capaz de o fazer, como o pai combinava a ortodoxia marxista com uma permanente discussão de tudo e com todos. Sei que ele ia ficar aflito ao ver-nos chocar. Mas não ia esperar outra coisa de nós. Se alguma coisa correr mal, podemos pedir ao Vasco para arbitrar. Boa sorte.