Carta a um irmão político
Ainda me lembro da noite
em que ouvi pela primeira vez a palavra sectário. Devia ter aí uns
catorze ou quinze anos e não fazia a mínima ideia do que aquilo queria
dizer. Mas pelo ar com que empregavas a expressão, não devia ser coisa
boa. Aliás, inserida na frase "os seus amigos sectários...", não podia
mesmo ser coisa boa. E pela cara com que o nosso pai a recebia, a coisa
não era mesmo boa. Como militante do PCP que o pai era há décadas, ele
já devia ter ouvido esse ataque umas mil vezes. Como militante
socialista que tu eras há uns sete ou oito anos, já a terias proferido
algumas vezes.
Não sei se era coisa da faculdade de Direito onde
andavas, com a JS e a JCP a disputar a Associação de Estudantes como se
fosse a coisa mais importante do mundo, se eram assuntos mais vastos da
esquerda, daqueles que ainda hoje ocupam a cabeça de tanta gente, sem
progresso ou resultado aparente. Sei apenas que olhava para vocês com
admiração pelo empenho com que discutiam, mas sempre com a impressão de
que gostava muito mais de assistir do que participar. Às vezes, o meu
tio João juntava-se às discussões, e como militante da primeira hora do
PSD, fazia com que tudo aquilo se tornasse num diálogo ainda mais
interessante e ainda mais impossível. Cresci a ver e a ouvir isso e não
tenho dúvidas de que vocês os três, cada um com a sua dose, são
responsáveis parciais pelo que acabou por ser o meu trabalho. Foi um
treino forçado, mas intensivo.
Passaram trinta anos. Tu nunca largaste a política nem o
PS. O meu tio João morreu no ano passado com as quotas e o fervor pelo
PSD em dia. E o pai, claro, morreu sem nunca deixar o PCP, apesar de
todas as dúvidas a que fomos assistindo, de ter votado como votou no
Congresso do Porto - acho que ao lado do Miguel Portas - e de tudo o que
se passou nos anos seguintes, com alguns dos melhores amigos dele a
saírem do partido. À maneira dele, lidou bem com isso. Manteve os amigos
e nunca confundiu as coisas. Lembro-me do desgosto que ele teve quando o
Lima de Freitas apoiou o Freitas do Amaral em 1986. Mas lembro-me ainda
melhor de como, ano após ano, eles os dois mais o David Mourão
Ferreira, conversavam noite fora na Praia do Carvoeiro, esquecendo as
divergências políticas e lembrando tudo o que os unia e divertia.
Podia seguir página abaixo, com exemplos destes. Mas
lembro apenas mais um, quando o pai ficava tardes à conversa com a
Helena Sacadura Cabral, que encontrava quando ia almoçar a um pequeno
restaurante nas Janelas Verdes. E só lembro isso porque, além das óbvias
divergências políticas deles e da ainda mais óbvia amizade, a Helena
tinha em casa um problema bicudo, aquele que todos os portugueses
conhecem, o do Paulo e do Miguel Portas. E só lembro isto, porque na
terça-feira à noite, pouco tempo depois de termos falado pela primeira
vez ao telefone - já tu eras candidato e já eu tinha posto o meu lugar
no Expresso à disposição da administração e da redação -, a Constança
Cunha e Sá ligou-me a a dizer "ouve lá, vocês só têm que fazer como o
Paulo e o Miguel".
A Constança não podia ter sido nem mais genuína nem
mais simpática. Mas não sei se a coisa é assim tão simples, muito menos
se é mais mais fácil ou difícil. Eles foram jornalistas mas foram sempre
políticos. Tu nunca foste jornalista e eu nunca fui político. Andámos e
andamos em barricadas diferentes. E é assim que tem que ser. Temos a
vantagem de saber que nunca teremos de fazer um frente a frente, mas
temos a desvantagem de saber que o Expresso te vai cair em cima de
quando em vez e que tu vais tentar cair em cima do Expresso. Não sei se
vai haver Congresso e não faço a mínima ideia se o vais ganhar. Mas sei
que agora é diferente.
O Expresso já teve um desafio maior pela frente, quando
Francisco Balsemão foi para o governo e depois para primeiro-ministro. O
jornal passou com distinção na prova. Foi impiedoso, às vezes demais, e
fê-lo com estilo e com estrondo. Não gosto de falar em nome da redação
onde trabalho, mas conhecendo os meus colegas, sei que não lhes passa
pela cabeça fazer alguma coisa diferente. Presumo que estejas preparado
para isso. Eu estou. Ou melhor, vou estando.
Outro dia, na homenagem que fizeram ao pai na Casa de
Goa, o Vasco Vieira de Almeida lembrou, como só ele é capaz de o fazer,
como o pai combinava a ortodoxia marxista com uma permanente discussão
de tudo e com todos. Sei que ele ia ficar aflito ao ver-nos chocar. Mas
não ia esperar outra coisa de nós. Se alguma coisa correr mal, podemos
pedir ao Vasco para arbitrar. Boa sorte.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home