CARTA AO PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL
Exmo.
Senhor
Primeiro
Ministro
Hesitei
muito em
dirigir-lhe
estas
palavras, que
mais não dão
do que uma
pálida ideia
da onda de
indignação que
varre o país,
de norte a
sul, e de
leste a oeste.
Além do mais,
não é meu
costume nem
vocação
escrever
coisas de
cariz
político, mais
me inclinando
para o pelouro
cultural. Mas
há momentos em
que, mesmo que
não vamos nós
ao encontro da
política, vem
ela,
irresistivelmente,
ao nosso
encontro. E,
então, não há
que fugir-lhe.
Para
ser
inteiramente
franco,
escrevo-lhe,
não tanto por
acreditar que
vá ter em V.
Exa. qualquer
efeito – todo
o vosso
comportamento,
neste primeiro
ano de
governo,
traindo,
inescrupulosamente,
todas as
promessas
feitas em
campanha
eleitoral, não
convida à
esperança numa
reviravolta! –
mas, antes,
para ficar de
bem com a
minha
consciência.
Tenho 82 anos
e pouco me
restará de
vida, o que
significa que,
a mim, já
pouco mal
poderá
infligir V.
Exa. e o algum
que me inflija
será sempre de
curta duração.
É aquilo a que
costumo chamar
“as vantagens
do túmulo” ou,
se preferir, a
coragem que dá
a proximidade
do túmulo.
Tanto o que me
dê como o que
me tire será
sempre de
curta duração.
Não será,
pois, de mim
que falo,
mesmo quando
use, na frase,
o “odioso eu”,
a que aludia
Pascal.
Mas
tenho, como
disse, 82
anos, e,
portanto, uma
alongada e bem
vivida
experiência da
velhice – da
minha e da dos
meus amigos e
familiares. A
velhice é um
pouco – ou é
muito – a
experiência de
uma contínua e
ininterrupta
perda de
poderes.
“Desistir é a
derradeira
tragédia”,
disse um
escritor pouco
conhecido.
Desistir é
aquilo que vão
fazendo, sem
cessar, os que
envelhecem.
Desistir,
palavra
horrível.
Estamos no
verão, no
momento em que
escrevo isto,
e acorrem-me
as palavras
tremendas de
um grande
poeta inglês
do século XX
(Eliot): “Um
velho, num mês
de secura”...
A velhice,
encarquilhando-se,
no meio da
desolação e da
secura. É para
isto que
servem os
poetas: para
encontrarem,
em poucas
palavras, a
medalha eficaz
e definitiva
para uma
situação, uma
visão, uma
emoção ou uma
ideia.
A
velhice,
Senhor
Primeiro
Ministro, é,
com as dores
que arrasta –
as físicas, as
emotivas e as
morais – um
período bem
difícil de
atravessar. Já
alguém a
definiu como o
departamento
dos doentes
externos do
Purgatório. E
uma grande
contista da
Nova Zelândia,
que dava pelo
nome de
Katherine
Mansfield, com
a afinada
sensibilidade
e sabedoria da
vida, de que
V. Exa. e o
seu governo
parecem ter
défice,
observou, num
dos contos
singulares do
seu belíssimo
livro
intitulado The
Garden Party:
“O velho Sr.
Neave
achava-se
demasiado
velho para a
primavera.”
Ser velho é
também isto:
acharmos que a
primavera já
não é para
nós, que não
temos direito
a ela, que
estamos a
mais, dentro
dela... Já foi
nossa, já, de
certo modo,
nos definiu.
Hoje, não.
Hoje, sentimos
que já não
interessamos,
que, até,
incomodamos.
Todo
o discurso
político de V.
Exas., os do
governo, todas
as vossas
decisões
apontam na
mesma
direcção:
mandar-nos
para o cimo da
montanha,
embrulhados em
metade de uma
velha manta, à
espera de que
o urso
lendário (ou o
frio) venha
tomar conta de
nós.
Cortam-nos
tudo, o
conforto, o
direito de nos
sentirmos, não
digo amados
(seria muito),
mas, de algum
modo,
utilizáveis:
sempre temos
umas pitadas
de sabedoria
caseira a
propiciar aos
mais
estouvados e
impulsivos da
nova casta que
nos assola.
Mas não.
Pessoas, como
eu, estiveram,
até depois dos
65 anos, sem
gastar um
tostão ao
Estado, com a
sua saúde ou
com a
faltadela.
Sempre, no
entanto,
descontando
uma fatia
pesada do seu
salário, para
uma ADSE, que
talvez nos
fosse útil,
num período de
necessidade,
que se foi
desejando
longínquo.
Chegado, já
sobre o tarde,
o momento de
alguma
necessidade,
tudo nos é
retirado, sem
uma atenção,
pequena que
fosse, ao
contrato
anteriormente
firmado. É
quando mais
necessitamos,
para lutar
contra a
doença, contra
a dor e contra
o isolamento
gradativamente
crescente, que
nos
constituímos
em alvo
favorito do
tiroteio
fiscal:
subsídios (que
não passavam
de uma forma
de disfarçar a
incompetência
salarial),
comparticipações
nos custos da
saúde,
actualizações
salariais –
tudo pela
borda fora.
Incluindo,
também, esse
papel
embaraçoso que
é a
Constituição,
particularmente
odiada por
estes novos
fundibulários.
O que é
preciso é
salvar os
ricos, os
bancos, que
andaram a
brincar à Dona
Branca com o
nosso dinheiro
e as empresas
de tubarões,
que enriquecem
sem arriscar
um cabelo, em
simbiose
sinistra com
um Estado que
dá o que não é
dele e paga o
que diz não
ter, para que
eles
enriqueçam
mais, passando
a fruir o que
também não é
deles, porque
até é nosso.
Já
alguém,
aludindo à
mesma falta de
sensibilidade
de que V. Exa.
dá provas, em
relação à
velhice e aos
seus poderes
decrescentes e
mal apoiados,
sugeriu, com
humor ferino,
que se
atirassem os
velhos e os
reformados
para asilos
desguarnecidos
, situados, de
preferência,
em andares
altos de
prédios muito
altos: de um
14º andar,
explicava, a
desolação que
se comtempla
até passa por
paisagem. V.
Exa. e os do
seu governo
exibem uma
sensibilidade
muito, mas
mesmo muito,
neste gosto.
V. Exas.
transformam a
velhice num
crime punível
pela medida
grande. As
políticas
radicais de V.
Exa, e do seu
robôtico
Ministro das
Finanças -
sim, porque a
Troika
informou que
as políticas
são vossas e
não deles... –
têm levado a
isto: a uma
total
anestesia das
antenas
sociais ou
simplesmente
humanas, que
caracterizam
aqueles
grandes
políticos e
estadistas que
a História não
confina a
míseras notas
de pé de
página.
Falei
da velhice
porque é o
pelouro que,
de momento,
tenho mais à
mão. Mas o
sofrimento
devastador,
que o
fundamentalismo
ideológico de
V. Exa. está
desencadear
pelo país
fora, afecta
muito mais do
que a fatia
dos velhos e
reformados.
Jovens sem
emprego e sem
futuro à
vista, homens
e mulheres de
todas as
idades e de
todos os
caminhos da
vida – tudo é
queimado no
altar
ideológico
onde arde a
chama de um
dogma cego à
fria realidade
dos factos e
dos
resultados.
Dizia Joan
Ruddock não
acreditar que
radicalismo e
bom senso
fossem
incompatíveis.
V. Exa. e o
seu governo
provam que o
são: não há
forma de
conviverem
pacificamente.
Nisto, estou
muito de
acordo com a
sensatez do
antigo
ministro
conservador
inglês,
Francis Pym,
que teve a
ousadia de
avisar a
Primeira
Ministra
Margaret
Thatcher (uma
expoente do
extremismo
neoliberal),
nestes termos:
“Extremismo e
conservantismo
são termos
contraditórios”.
Pym pagou, é
claro, a
factura: se a
memória me não
engana, foi o
primeiro
membro do
primeiro
governo de
Thatcher a ser
despedido, sem
apelo nem
agravo. A
“conservadora”
Margaret
Thatcher –
como o
“conservador”
Passos Coelho
– quis
misturar água
com azeite,
isto é,
conservantismo
e extremismo.
Claro que não
dá.
Alguém
observava que
os americanos
ficavam muito
admirados
quando se
sabiam
odiados. É
possível que,
no governo e
no partido a
que V. Exa.
preside, a
maior parte
dos seus
constituintes
não se
aperceba bem
(ou,
apercebendo-se,
não
compreenda),
de que lavra,
no país, um
grande
incêndio de
ressentimento
e ódio. Darei
a V. Exa. – e
com isto
termino – uma
pista para um
bom
entendimento
do que se está
a passar.
Atribuíram-se
ao Papa
Gregório VII
estas
palavras: ”Eu
amei a justiça
e odiei a
iniquidade:
por isso,
morro no
exílio.” Uma
grande parte
da população
portuguesa,
hoje, sente-se
exilada no seu
próprio país,
pelo delito de
pedir mais
justiça e mais
equidade.
Tanto uma como
outra se
fazem, cada
dia, mais
invisíveis. Há
nisto, é
claro, um
perigo.
De
V. Exa.,
atentamente,
Eugénio
Lisboa
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