HÁ ALGUNS INCOMPETENTES, MAS POUCOS INOCENTES
por Miguel Sousa Tavares - Expresso, 02 Junho 2012
Como caixa de ressonância daqueles que de quem é porta-voz (tendo há muito deixado de ter voz
própria), o presidente da Comissão Europeia, o português Durão Barroso, veio alinhar-se com os
conselhos da troika sobre Portugal: não há outro caminho que não o de seguir a “solução” da austeridade
e acelerar as “reformas estruturais” — descer os custos salariais, liberalizar mais ainda os despedimentos
e diminuir o alcance do subsídio de desemprego. Que o trio formado pelo careca, o etíope e o alemão
ignorem que em Portugal se está a oferecer 650 euros de ordenado a um engenheiro electrotécnico
falando três línguas estrangeiras ou 580 euros a um dentista em horário completo, é mais ou menos
compreensível para quem os portugueses são uma abstracção matemática. Mas que um português,
colocado nos altos círculos europeus e instalado nos seus hábitos, também ache que um dos nossos
problemas principais são os ordenados elevados, já não é admissível. Lembremo-nos disto quando ele por
aí vier candidatar-se a Presidente da República.
Durão Barroso é uma espécie de cata-vento da impotência e incompetência dos dirigentes europeus.
Todas as semanas ele cheira o vento e vira-se para o lado de onde ele sopra: se os srs. Monti, Draghi,
Van Rompuy se mostram vagamente preocupados com o crescimento e o emprego, lá, no alto do edifício
europeu, o cata-vento aponta a direcção; se, porém, na semana seguinte, os mesmos senhores mais
a srª Merkel repetem que não há vida sem austeridade, recessão e desemprego, o cata-vento vira 180
graus e passa a indicar a direcção oposta. Quando um dia se fizer a triste história destes anos de suicídio
europeu, haveremos de perguntar como é que a Europa foi governada e destruída por um clube fechado
de irresponsáveis, sem uma direcção, uma ideia, um projecto lógico. Como é que se começou por brincar
ao directório castigador para com a Grécia para acabar a fazer implodir tudo em volta. Como é que se
conseguiu levar a Lei de Murphy até ao absoluto, fazendo com que tudo o que podia correr mal tivesse
corrido mal: o contágio do subprime americano na banca europeia, que era afirmadamente inviável e que
estoirou com a Islândia e a Irlanda e colocou a Inglaterra de joelhos; a falência final da Grécia, submetida
a um castigo tão exemplar e tão inteligente que só lhe restou a alternativa de negociar com as máfias
russas e as Three Gorges chinesas; como é que a tão longamente prevista explosão da bolha imobiliária
espanhola acabou por rebentar na cara dos que juravam que a Espanha aguentaria isso e muito mais;
como é que as agências de notação, os mercados e a Goldman Sachs puderam livremente atacar a dívida
soberana de todos os Estados europeus, excepto a Alemanha, numa estratégia concertada de cerco ao
euro, que finalmente tornou toda a Europa insolvente. Ou como é que um pequeno país, como Portugal,
experimentou uma receita jamais vista — a de tentar salvar as finanças públicas através da ruína da
economia — e que, oh, espanto, produziu o resultado mais provável: arruinou uma coisa e outra. E como
é que, no final de tudo isto, as periferias implodiram e só o centro — isto é, a Alemanha e seus satélites —
se viu coberto de mercadorias que os seus parceiros europeus não tinham como comprar e atulhado em
triliões de euros depositados pelos pobres e desesperados e que lhes puderam servir para comprar tudo,
desde as ilhas gregas à água que os portugueses bebiam.
Deixemos os grandes senhores da Europa entregues à sua irrecuperável estupidez e detenhamo-nos sobre
o nosso pequeno e infeliz exemplo, que nos serve para perceber que nada aconteceu por acaso, mas sim
porque umas vezes a incompetência foi demasiada e outras a inocência foi de menos.
O que podemos nós pensar quando o ex-ministro Teixeira dos Santos ainda consegue jurar que havia
um risco sistémico de contágio se não se nacionalizasse aquele covil de bandidos do BPN? Será que todo
o restante sistema bancário também assentava na fraude, na evasão fiscal, nos negócios inconfessáveis
para amigos, nos bancos-fantasmas em Cabo Verde para esconder dinheiro e toda a restante série de
traficâncias que de há muito — de há muito! — se sabia existirem no BPN? E como, com que fundamento,
com que ciência, pode continuar a sustentar que a alternativa de encerrar, pura e simplesmente, aquele
vão de escada “faria recuar a economia 4%”? Ou que era previsível que a conta da nacionalização para os
contribuintes não fosse além dos 700 milhões de euros?
O que poderemos nós pensar quando descobrimos que à despesa declarada e à dívida ocultada pelo dr.
Jardim ainda há a somar as facturas escondidas debaixo do tapete, emitidas pelos empreiteiros amigos
da “autonomia” e a quem ele prometia conseguir pagar, assim que os ventos de Lisboa lhe soprassem
mais favoravelmente?
O que poderemos nós pensar quando, depois de tantos anos a exigir o fim das SCUT, descobrimos
que, afinal, o fim das auto-estradas sem portagens ainda iria conseguir sair mais caro ao Estado? Como
poderíamos adivinhar que havia uns contratos secretos, escondidos do Tribunal de Contas, em que
o Estado garantia aos concessionários das PPP que ganhariam sempre X sem portagens e X+Y com
portagens? Mas como poderíamos adivinhá-lo se nos dizem sempre que o Estado tem de recorrer aos
serviços de escritórios privados de advocacia (sempre os mesmos), porque, entre os milhares de juristas
dos quadros públicos, não há uma meia dúzia que consiga redigir um contrato em que o Estado não seja
sempre comido por parvo?
A troika quer reformas estruturais? Ora, imponha ao Governo que faça uma lei retroactiva — sim,
retroactiva — que declare a nulidade e renegociação de todos os contratos celebrados pelo Estado com
privados em que seja manifesto e reconhecido pelo Tribunal de Contas que só o Estado assumiu riscos,
encaixou prejuízos sem correspondência com o negócio e fez figura de anjinho. A Constituição não deixa?
Ok, estabeleça-se um imposto extraordinário de 99,9% sobre os lucros excessivos dos contratos de PPP
ou outros celebrados com o Estado. Eu conheço vários.
Quer outra reforma, não sei se estrutural ou conjuntural, mas, pelo menos, moral? Obrigue os bancos
a aplicarem todo o dinheiro que vão buscar ao BCE a 1% de juros no financiamento da economia e
das empresas viáveis e não em autocapitalização, para taparem os buracos dos negócios de favor e de
influência que andaram a financiar aos grupos amigos.
Mais uma? Escrevam uma lei que estabeleça que todas as empresas de construção civil, que estão
paradas por falta de obras e a despedir às dezenas de milhares, se possam dedicar à recuperação e
remodelação do património urbano, público ou privado, pagando 0% de IRC nessas obras. Bruxelas não
deixa? Deixa a Holanda ter um IRC que atrai para lá a sede das nossas empresas do PSI-20, mas não nos
deixa baixar parte dos impostos às nossas empresas, numa situação de emergência? OK, Bruxelas que
mande então fechar as empresas e despedir os trabalhadores. Cumpra-se a lei!
Outra? Proíbam as privatizações feitas segundo o modelo em moda, que consiste em privatizar a parte das
empresas que dá lucro e deixar as “imparidades” a cargo do Estado: quem quiser comprar leva tudo ou
não leva nada. E, já agora, que a operação financeira seja obrigatoriamente conduzida pela Caixa Geral de
Depósitos (não é para isso que temos um banco público, por enquanto?). O quê, a Caixa não tem vocação
ou aptidão para isso? Não me digam! Então, os administradores são pagos como privados, fazem negócios
com os grandes grupos privados, até compram acções dos bancos privados e não são capazes de fazer o
que os privados fazem? E, quanto à engenharia jurídica, atenta a reiterada falta de vocação e de aptidão
dos serviços contratados em outsourcing para defenderem os interesses do cliente Estado, a troika que
nos mande uma equipa de juristas para ensinar como se faz.
Tenho muitas mais ideias, algumas tão ingénuas como estas, mas nenhumas tão prejudiciais como
aquelas com que nos têm governado. A próxima vez que o careca, o etíope e o alemão cá vierem, estou
disponível para tomar um cafezinho com eles no Ritz. Pago eu, porque não tenho dinheiro para os juros
que eles cobram se lhes ficar a dever.
1 Comments:
Boa !!!
Mário em BXL
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