terça-feira, dezembro 13, 2011

Eu queria ver o Mundo

"Eu queria ver o Mundo fora da perspectiva egocêntrica europeia. Podia ter escolhido a Ásia ou a América do Sul, mas acabei por escolher África apenas porque o bilhete do avião era mais barato. Vim e fiquei. E por cerca de 25 anos vivi com um pé dentro e outro fora de Moçambique. O tempo passou, e hoje já não sou mais um jovem, de facto, aproximo-me da velhice. Mas a razão porque vivi toda a minha vida com um pé nas areias de África e o outro na neve europeia, na melancólica região de Norrland na Suécia, onde cresci, tem a ver com a vontade de ver claro e de compreender. A maneira mais simples de explicar o que aprendi da minha vivência em África é através da parábola acerca do porquê dos seres humanos terem dois ouvidos mas só uma língua. Porquê? Provavelmente porque devemos ouvir duas vezes mais do que falar. Em África, ouvir é um princípio de conduta. Princípio esse que foi perdido no constante tagarelar no mundo ocidental, onde ninguém parece ter tempo nem mesmo interesse para ouvir o outro. Da minha própria experiência, reparei quão rápido tinha que responder a perguntas durante uma entrevista na TV há uns anos atrás. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de ouvir. Falamos, falamos, e acabamos por ficar com medo do silêncio, refúgio de quem procura serenamente uma resposta.
Tenho idade para me lembrar de quando a literatura Sul Americana emergiu na consciência popular e mudou para sempre a nossa visão da condição humana e do que significa ser-se humano. Agora acho que chegou a vez de África. Por toda a parte, gente do continente Africano escreve e conta histórias. Em breve a literatura africana explodirá na cena mundial, tal como há uns anos a literatura sul americana explodiu quando Gabriel Garcia Marques e outros lideraram uma tumultuosa e emocionante revolta contra uma verdade arreigada. Em breve uma torrente literária Africana oferecerá uma nova prespectiva da condição humana. O autor moçambicano Mia Couto, por exemplo, criou um realismo mágico que mistura a linguagem escrita com a grande tradição oral de África. Se formos capazes ouvir, iremos descobrir que muitas narrativas africanas estão estruturadas de forma completamente diferente do que estamos habituados. Estou certamente a simplificar, ainda que todos saibam que é verdade o que afirmo. A literatura ocidental é normalmente linear, vai do princípio para o fim sem grandes digressões no espaço e no tempo. Não é este o caso em África. Em lugar de uma narrativa linear, em África existe uma livre e exuberante forma de contar historias que avança e recua no tempo, juntando o passado e o presente. Alguém que tenha morrido há muito tempo pode intervir numa conversa entre duas pessoas bem vivas. Isto é só um exemplo. Os nómadas que ainda existem no deserto o Kalaari contam Histórias uns aos outros durante as suas deambulações diárias em busca de raízes comestíveis e animais para caçar. Muitas vezes contam mais que uma história ao mesmo tempo. Por vezes três ou quatro histórias correm em paralelo. Mas antes de regressarem o local onde passarão a noite, as histórias são ligadas, ou separadas para sempre, mas a todas é dado um fim.
Há uns anos atrás, estava eu sentado num banco de rua frente ao Teatro Avenida em Maputo, onde trabalhava como conselheiro artistico. Estava um dia muito quente, tinhamos feito uma pausa nos ensaios e saído para a rua na esperança que passasse uma brisa fresca. O ar condicionado do Teatro há muito que deixara de funcionar. Dois velhos africanos estavam também sentados comigo naquele banco, havia lugar para os três. Em África as pessoas partilham mais do que um copo de água com um grande espírito de irmandade. Mesmo em tempos difíceis as pessoas são generosas. Ouvi então os dois homens que falavam de um terceiro que tinha morrido há pouco tempo, e um deles dizia, “Eu visitei-o em sua casa, e ele começou a contar-me uma história interessante que lhe tinha acontecido quando ainda era jovem. Mas era uma história longa. A noite veio e decidimos que eu deveria voltar no dia seguinte para ouvir o resto da história. Quando eu voltei ele tinha morrido” O outro estava em silêncio. E eu decidi não me levantar do banco enquanto o homem não respondesse ao que tinha ouvido. Tive a impressão que assunto era importante. Finalmente ele falou. “Não é uma boa maneira de morrer - antes de teres contado o fim da tua história” Ao ouvir aqueles dois homens, dei por mim a pensar que a designação para a nossa espécie não devia ser Homo sapiens mas Homo narrants, ser que narra histórias. O que nos diferencia dos animais é podermos escutar os sonhos uns dos outros, os medos, as alegrias, as tristezas, os desejos e fracassos, e os outros pelo seu lado poderem ouvir os nossos também. Muita gente comete o erro de confundir informação com conhecimento. Não são a mesma coisa. Conhecimento envolve interpretação da informação. Conhecimento implica ouvir. Então, se eu estou certo que nós somos criaturas contadoras de histórias, apesar de nos permitirmos estar calados de vez em quando, a narrativa eterna continua. Muitas palavras serão escritas no vento e na areia da praia, ou publicadas num qualquer obscuro “site”. Mas o contador de histórias continuará, até que o último ser humano pare de as escutar. Poderemos então enviar a grande crónica da Humanidade por o Universo infinito. Quem sabe? Talvez lá esteja alguém desejando escutar..." Henning Mankell