ÁFRICA
OU O REGRESSO DA VELHA SENHORA
Quando a memória vai à procura de lenha, traz o feixe que lhe agrada, diz o provérbio. Por nada deste mundo eu deitaria fogo ao feixe dos meus sonhos: O renascer da Velha Senhora. Há no olhar do miraculado algo de forte e de terrivelmente misterioso, pois ninguém, a começar por ele, pode descrever com clareza e com nitidez a forma, a natureza ou sequer o lugar da sua estranha viagem. A única certeza é que voltamos de longe. Submersa há séculos pela voragem alucinante das misérias do mundo, a Velha Senhora veio de novo à tona, estimulada pela energia que confere o desespero e, porventura mais prosaicamente, pelo instinto de sobrevivência. Viver ou perecer.
Ora ela quer viver. Apresenta-se radiosa, como é devido neste dia de glória. Diante dos filhos e de todos aqueles que nos quatro cantos do mundo se mantinham em vigília à sua cabeceira, falou: Não, não sucumbirei nas ruínas do século! A voz é incrivelmente límpida. O rosto conserva a cor da esperança enquanto afasta a multidão com um olhar cheio de amor. Como a multidão, deslumbrada, não reage, acrescenta com determinação:
O meu dever afinal é existir! Existir...que é como quem diz viver com dignidade...ao fim e ao cabo. Um murmúrio prolongado, depois o bulício, e em seguida a explosão de uma onda de alegria. Feixes de luz que iluminam um novo caminho. Sublime. No meu consciente inebriado a imagem radiosa da Velha Senhora dá subitamente lugar a uma África de pé, liberta dos demónios da barbárie e da ignomínia, firmemente decidida a erradicar as doenças da desonra. O sobressalto salutar da última oportunidade para inscrever em letras de ouro uma página gloriosa nos anais deste século e mostrar à humanidade – sobretudo à humanidade sofredora – que nunca nada estará perdido enquanto a Razão, o Amor e a Tolerância governarem o mundo. Imagino que a besta ignóbil foi imolada, que o clamor endoidecedor das máquinas de guerra deixará de martelar nas nossas consciências mortificadas, que deixarão de flutuar cadáveres putrefactos em torrentes de sangue. Afasto energicamente a visão aterradora de esqueletos que se batem contra o último sopro de uma vida que foge. Hordas de fantasmas errantes no Ruanda, no Burundi, no Congo, na Serra Leoa, em Angola, na Somália... Orgia de violência que deixa aos chefes o prazer da pilhagem da pátria, aos povos o tempo de morrer e ao continente nada a não ser a decadência.
E eis que a Velha Senhora, doente terminal posta diante do Pai Eterno, exangue, exaurida, se reergue. Suprema felicidade! Mas, teimosamente, as visões persistem. O percurso caótico do continente ao longo do curso do século continua, mau grado meu, a desenrolar-se diante dos meus olhos. Entidade geográfica transformada em ama de leite, não apenas bela, não apenas rica, não apenas quente e ensolarada para melhor embalar os corações, é ainda portadora da insígnia de honra de ter carregado no seu seio a humanidade balbuciante.
Velha, apesar de nunca enrugada, porque Testemunha da obra do Tempo, entrou no século de pés e mãos atados pela Conferência de Berlim, que sem lhe pedir parecer selou o seu matrimónio definitivo com pretendentes poderosos. Decerto que foi menos bárbaro e traumatizante do que o tráfico de negros, e sem dúvida que não foi mais selvagem do que as guerras fratricidas e as ditaduras que aqui e além infligem sevícias. Em nome de uma nova fraternidade forjada pela História, partilhada e assumida, filhos da Velha Senhora misturaram o seu sangue com o dos seus irmãos para fazer triunfar ideais nobres, em momentos cruciais da História do mundo, e em lugares trágicos.
Mas a Velha Senhora não ouviu o enorme e aterrador deflagrar da primeira bomba atómica. Do ponto de vista geográfico, Hiroxima e Nagasáqui ficavam de facto muito longe. Os seus filhos capazes de compreender o acontecimento viveram-no confortavelmente sentados na barca dos poderosos que seguravam o leme.
Não compreenderam que essa bomba marcava uma viragem decisiva na marcha do mundo, que a inteligência humana iria rapidamente atingir picos inimagináveis para o melhor e para o pior e que era preciso, para se preservarem do pior, respirar o ar do século em matéria de conhecimento e de invenção. Faltou-lhes, como hoje de resto, a visão, o objectivo de um grande desígnio – destino?- no concerto do mundo. E assim se instalou, pouco depois da curta euforia gerada pelas independências, a era dos pesadelos.
De novo as ditaduras sangrentas, a fome, como na Idade Média, as doenças, a ruína dos sistemas sociais e económicos. Enquanto isso, há dirigentes sentados sobre minas de diamantes que empurram os seus povos para o extermínio recíproco por uns quilómetros quadrados de terra.
Socorro, feixe meu! A Velha Senhora reaparece sob os traços de uma dama resplandecente, na força da vida. Chamemos-lhe Awa. Outros diriam Eva, pouco importa. Sob qualquer céu onde se seja mulher se pode gerar vida em nós e por toda a parte. Awa tem a beleza do sonho, uma noite de núpcias. Tem carácter. A sua voz faz-se ouvir longe:
Existir é viver com dignidade, disse ela fixando o olhar na multidão que se comprimia à sua volta. Um continente inteiro de pé, rejubilante, num enorme canteiro florido, entoando um hino de alegria, de olhos postos no futuro.
Julgo ter compreendido que os tiranos morreram, que a estupidez, a corrupção e o machado de guerra foram enterrados, reencontrada a dignidade e afirmada a vontade de fazer ouvir a voz no concerto do mundo. E que amanhã as gerações vindouras irão ler, no livro de ouro dos lugares da memória do século XX, a bela história da Velha Senhora. E ninguém porá em dúvida que se trata de um feixe de lenha, pois os grandes destinos nascem do sonho. Um dia, um tal Nelson Mandela, o mais velho prisioneiro do mundo...
(texto de Aminata Sow Fall, publicado no jornal Público no primeiro dia do ano 2000)
Ora ela quer viver. Apresenta-se radiosa, como é devido neste dia de glória. Diante dos filhos e de todos aqueles que nos quatro cantos do mundo se mantinham em vigília à sua cabeceira, falou: Não, não sucumbirei nas ruínas do século! A voz é incrivelmente límpida. O rosto conserva a cor da esperança enquanto afasta a multidão com um olhar cheio de amor. Como a multidão, deslumbrada, não reage, acrescenta com determinação:
O meu dever afinal é existir! Existir...que é como quem diz viver com dignidade...ao fim e ao cabo. Um murmúrio prolongado, depois o bulício, e em seguida a explosão de uma onda de alegria. Feixes de luz que iluminam um novo caminho. Sublime. No meu consciente inebriado a imagem radiosa da Velha Senhora dá subitamente lugar a uma África de pé, liberta dos demónios da barbárie e da ignomínia, firmemente decidida a erradicar as doenças da desonra. O sobressalto salutar da última oportunidade para inscrever em letras de ouro uma página gloriosa nos anais deste século e mostrar à humanidade – sobretudo à humanidade sofredora – que nunca nada estará perdido enquanto a Razão, o Amor e a Tolerância governarem o mundo. Imagino que a besta ignóbil foi imolada, que o clamor endoidecedor das máquinas de guerra deixará de martelar nas nossas consciências mortificadas, que deixarão de flutuar cadáveres putrefactos em torrentes de sangue. Afasto energicamente a visão aterradora de esqueletos que se batem contra o último sopro de uma vida que foge. Hordas de fantasmas errantes no Ruanda, no Burundi, no Congo, na Serra Leoa, em Angola, na Somália... Orgia de violência que deixa aos chefes o prazer da pilhagem da pátria, aos povos o tempo de morrer e ao continente nada a não ser a decadência.
E eis que a Velha Senhora, doente terminal posta diante do Pai Eterno, exangue, exaurida, se reergue. Suprema felicidade! Mas, teimosamente, as visões persistem. O percurso caótico do continente ao longo do curso do século continua, mau grado meu, a desenrolar-se diante dos meus olhos. Entidade geográfica transformada em ama de leite, não apenas bela, não apenas rica, não apenas quente e ensolarada para melhor embalar os corações, é ainda portadora da insígnia de honra de ter carregado no seu seio a humanidade balbuciante.
Velha, apesar de nunca enrugada, porque Testemunha da obra do Tempo, entrou no século de pés e mãos atados pela Conferência de Berlim, que sem lhe pedir parecer selou o seu matrimónio definitivo com pretendentes poderosos. Decerto que foi menos bárbaro e traumatizante do que o tráfico de negros, e sem dúvida que não foi mais selvagem do que as guerras fratricidas e as ditaduras que aqui e além infligem sevícias. Em nome de uma nova fraternidade forjada pela História, partilhada e assumida, filhos da Velha Senhora misturaram o seu sangue com o dos seus irmãos para fazer triunfar ideais nobres, em momentos cruciais da História do mundo, e em lugares trágicos.
Mas a Velha Senhora não ouviu o enorme e aterrador deflagrar da primeira bomba atómica. Do ponto de vista geográfico, Hiroxima e Nagasáqui ficavam de facto muito longe. Os seus filhos capazes de compreender o acontecimento viveram-no confortavelmente sentados na barca dos poderosos que seguravam o leme.
Não compreenderam que essa bomba marcava uma viragem decisiva na marcha do mundo, que a inteligência humana iria rapidamente atingir picos inimagináveis para o melhor e para o pior e que era preciso, para se preservarem do pior, respirar o ar do século em matéria de conhecimento e de invenção. Faltou-lhes, como hoje de resto, a visão, o objectivo de um grande desígnio – destino?- no concerto do mundo. E assim se instalou, pouco depois da curta euforia gerada pelas independências, a era dos pesadelos.
De novo as ditaduras sangrentas, a fome, como na Idade Média, as doenças, a ruína dos sistemas sociais e económicos. Enquanto isso, há dirigentes sentados sobre minas de diamantes que empurram os seus povos para o extermínio recíproco por uns quilómetros quadrados de terra.
Socorro, feixe meu! A Velha Senhora reaparece sob os traços de uma dama resplandecente, na força da vida. Chamemos-lhe Awa. Outros diriam Eva, pouco importa. Sob qualquer céu onde se seja mulher se pode gerar vida em nós e por toda a parte. Awa tem a beleza do sonho, uma noite de núpcias. Tem carácter. A sua voz faz-se ouvir longe:
Existir é viver com dignidade, disse ela fixando o olhar na multidão que se comprimia à sua volta. Um continente inteiro de pé, rejubilante, num enorme canteiro florido, entoando um hino de alegria, de olhos postos no futuro.
Julgo ter compreendido que os tiranos morreram, que a estupidez, a corrupção e o machado de guerra foram enterrados, reencontrada a dignidade e afirmada a vontade de fazer ouvir a voz no concerto do mundo. E que amanhã as gerações vindouras irão ler, no livro de ouro dos lugares da memória do século XX, a bela história da Velha Senhora. E ninguém porá em dúvida que se trata de um feixe de lenha, pois os grandes destinos nascem do sonho. Um dia, um tal Nelson Mandela, o mais velho prisioneiro do mundo...
(texto de Aminata Sow Fall, publicado no jornal Público no primeiro dia do ano 2000)
1 Comments:
O texto foi escrito em 2000. Estamos no final de 2005. Os tiranos não morreram. A estupidez, a corrupção e o machado de guerra não foram enterrados.
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