quinta-feira, abril 14, 2005

Às nossas crianças



"Quando a memória vai à procura de lenha,
traz o feixe que lhe agrada", diz o provérbio.
Por nada deste mundo eu deitaria fogo ao feixe
dos meus sonhos: O renascer da Velha Senhora.



Há no olhar do miraculado algo de forte
e de terrivelmente misterioso, pois ninguém,
a começar por ele, pode descrever com clareza
e com nitidez a forma, a natureza ou sequer
o lugar da sua estranha viagem. A única certeza
é que voltamos de longe.



Submersa há séculos pela voragem alucinante
das misérias do mundo, a Velha Senhora veio
de novo à tona, estimulada pela energia que
confere o desespero e, porventura mais prosaicamente,
pelo instinto de sobrevivência. Viver ou perecer.



Ora ela quer viver, e apresenta-se radiosa,
como é devido neste dia de glória.
Diante dos seus filhos e de todos aqueles
que nos quatro cantos do mundo se mantinham
em vigília à sua cabeceira, falou:
Não, não sucumbirei nas ruínas do século!



A voz é incrivelmente límpida. O rosto conserva
a cor da esperança enquanto afasta a multidão
com um olhar cheio de amor. Como a multidão,
deslumbrada, não reage, acrescenta com determinação:
O meu dever afinal é existir! Existir... que é
como quem diz viver com dignidade... ao fim e ao cabo.



Um murmúrio prolongado, depois o bulício,
e em seguida a explosão de uma onda de alegria.
Feixes de luz que iluminam um novo caminho. Sublime!



No meu consciente inebriado a imagem radiosa
da Velha Senhora dá subitamente lugar a uma África de pé,
liberta dos demónios da barbárie e da ignominia,
firmemente decidida a erradicar as doenças da desonra.



Nunca nada estará perdido enquanto a Razão,
o Amor e a Tolerância governarem o mundo.



Imagino que a besta ignóbil foi imolada,
que o clamor endoidecedor das máquinas de guerra
deixará de martelar nas nossas consciências mortificadas,
que deixarão de flutuar cadáveres putrefactos em torrentes
de sangue. Afasto energicamente a visão aterradora de esqueletos
que se batem contra o último sopro de uma vida que foge.



Hordas de fantasmas errantes no Ruanda, no Burundi,
no Congo, na Serra Leoa, em Angola, na Somália...
Orgia de violência que deixa aos chefes o prazer
da pilhagem da pátria, aos povos o tempo de morrer
e ao continente nada a não ser a decadência. E eis que
a Velha Senhora, doente terminal posta diante do Pai Eterno,
exangue, exaurida, se reergue. Suprema felicidade!



Mas, teimosamente, as visões persistem.
O percurso caótico do continente no longo curso
do século continua, mau grado meu, a desenrolar-se
diante dos meus olhos. Entidade geográfica transformada
em ama de leite, não apenas bela, não apenas rica,
não apenas quente e ensoleirada para melhor embalar
os corações, é ainda portadora da insígnia de honra
de ter carregado no seu seio a humanidade balbuciante



Velha, apesar de nunca enrugada,
porque Testemunha da obra do Tempo,
entrou no século xx de pés e mãos atados
pela conferência de Berlim, que sem lhe pedir
parecer selou o seu matrimónio definitivo com
pretendentes poderosos.



Chamemos-lhe Awa. Outros diriam Eva, pouco importa.
Sob qualquer céu onde se seja mulher se pode gerar vida em nós
e por toda a parte.



Awa tem a beleza do sonho, uma noite de núpcias.
Tem carácter. A sua voz faz-se ouvir longe:
Existir é viver com dignidade, disse ela fixando
o olhar na multidão que se comprimia à sua volta.
Um continente inteiro de pé, rejubilante,
num enorme canteiro florido, entoando um hino de alegria
de olhos postos no futuro.



Julgo ter compreendido que os tiranos morreram,
que a estupidez, a corrupção e o machado de guerra
foram enterrados, reencontrada a dignidade e afirmada
a vontade de fazer ouvir a voz no concerto do mundo.
E que amanhã as gerações vindouras irão ler, no livro
de ouro dos lugares da memória do século xx,
a bela história da Velha Senhora.



E ninguém porá em dúvida que se trata de
um feixe de lenha, pois os grandes destinos
nascem do sonho. Um dia, um tal Nelson Mandela,
o mais velho prisioneiro do mundo...

(excerto de um texto de Aminata Sow-Fall, escritora senegalesa e destacada figura da literatura africana/jovens do grupo Batoto Yetu)

5 Comments:

Blogger Elvira said...

Está lindíssimo, o post!

2:56 da tarde  
Blogger Toix said...

Este texto foi escrito no ano 2000 a propósito da mudança do século. Sobre a tal maca, ela está para durar...
Ou não está?

7:25 da tarde  
Blogger Graza said...

Li como se fosse seu. Os parentesis não contaram. Saber escolher, também é saber escrever. Parabéns pela escolha!

9:58 da tarde  
Blogger Terra said...

Visitas cumpridas.
Deixei a marca neste post por motivos óbvios.
Parabéns!
Já me tinha apercebido das acácias olhadas de janelas diferentes. Agora o cacimbo chegou. Tudo está diferente.
:-)

9:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

engraçado faço parte do grupo e gostei de ver estas fotos antigas por aki, online. muito giro.

9:33 da tarde  

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